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Beach Body Surreal, de Deanne Flouton |
Este texto foi lido por mim, no Debate "Diálogos sobre a criação" (no dia 08/06/2013), evento do Núcleo de Psicanálise e Arte da Delegação Geral GO-DF da Escola Brasileira de Psicanálise. Participaram do debate: Wesley Peres, Paulo Guicheney e Cristiano Pimenta.
O significante faz adormecer, exceto quando é dito algo que não se compreende (Lacan). Como não quero passar pelo constrangimento de alguém, ou alguéns (no plural), ou todo mundo dormir durante a minha fala (que é na verdade uma fala-escrita), me esforcei em preparar pra vocês algo que gere o mínimo de compreensão.
Decidi falar de criação a partir da minha experiência com isso, mas usando a qualquer autor que me fosse útil, ainda que eu tenha que distorcer o que esse autor disse, ainda que eu tenha que inventar o que ele disse. Talvez, seja a melhor opção, talvez a pior. Digo que a criação não existe, existe uma criação, e outra criação, sempre outra, sempre cada uma — cada livro uma experiência diferente, mas deve haver algo que se repete, sempre há. Advirto que meu tema está restrito à criação literária, pois não tenho experiência nenhuma com outras.
Primeiramente, é preciso varrer todas as assombrações transcendentes sobre a criação literária, as mistificações metafísicas, se não fazemos isso estaremos fazendo algo como procurar, num quarto escuro, um gato preto que não está lá. Inspiração, por exemplo, palavra execrável se não estivermos falando sobre o aparelho respiratório. Criação não é inspiração, inspiração é o ar entrando no corpo pelo nariz, criação é outra coisa.
Vamos ao que interessa. Parto do princípio de que a obra literária é biográfica, e isso não é só uma frase pra causar, como se diz hoje em dia. Se pensamos que bio é vida e que grafia é escrita, principiamos a despir a palavra biografia do senso comum (e o senso comum é sempre a estupidez de linguagem, útil pra fazermos de conta que sabemos do que estamos falando quando falamos).
Biografia, escrita da vida, portanto. E o que é vivo é o corpo, o corpo é a coisa que vive e que morre. Então, que a criação pra mim, o nascedouro da obra tem a ver fundamentalmente com o corpo, com a pergunta “O que fazer com este corpo?” (façamos sexo, alguns podem sugerir, mas a pergunta é mais radical do que isso).
Essa pergunta traz, ainda que mal e porcamente, um acontecimento do corpo, o corpo se interroga sobre o que fazer com si mesmo. Diz Bataille que o corpo do animal está no mundo como a água está na água, mas o corpo do homem está no mundo tão perdido como Anna Kariênina no Finnegans Wake de James Joyce, nem se matar Anna Kariênina conseguirá, tal a disjunção entre ela, o seu corpo, e o mundo em que ela está. É disso que se trata esse “O que fazer com este corpo?”, com este corpo que goza sem porque, que morre sem porque, somos Anna Kariênina perambulando por um mundo Finnegans Wake, num mundo Joyce.
Então que pra alguns, no nível mais radical dessa pergunta, a única coisa que funciona, que torna viável ter este corpo, ser este corpo neste mundo humano feito de hieróglifos, é colocar essa questão em escrita. Transformar a fria prosa cotidiana, em algo infeccionado dos infernos do corpo. Extrair a linguagem do seu registro regulador, mortificador do corpo, e colocá-la num outro registro, naquele em que a linguagem biografa.
O escritor Juliano Pessanha escreveu “Se a aranha faz a teia, o homem tece biografia”. A aranha faz isso com o seu corpo: teia. O homem tece escrita biográfica quando faz literatura, faz o corpo vivo dizer-se, faz o gozo dizer-se, faz a morte dizer-se, faz o corpo produzir quantas respostas forem necessárias à questão “O que fazer com este corpo?”. E não são respostas explicativas, trata-se mais de um fazer, fazer obra é fazer algo com este corpo que eu sou. Bio-grafar, fazer o corpo dizer, já é um saber-fazer com o corpo.
Assim como a pulsão se origina no corpo, colocando psiquismo e cultura para trabalhar, a fim de obter objetos de satisfação, então, de modo equivalente, o objeto estético, digo que uma obra literária tem a mesma causa. Essa causação pulsional, ao que me parece, já é suficiente para pelo menos se considerar, muito seriamente, a possibilidade da obra literária como biografia, como exigência de trabalho, de criação por parte do corpo daquele que escreve.
Não é criação ex nihilo, mas criação ex corpore.
Então, o que estou dizendo é que: se pensarmos biografia (não como acontecimentos da vida de uma personalidade) mas como escrita da vida, da experiência com o corpo, da experiência-corpo, se pensarmos biografia como escrita dessa coisa infernal que vive e que morre (o corpo), então toda escrita literária é bio gráfica.
Desse modo, se a coisa narrada aconteceu na “famosa realidade”, ou não, isso não tem nenhuma importância. Um livro, se for de literatura, tem de ser uma máquina de linguagem que mimetiza a realidade diferindo dela, e se sustentando por si mesmo, enquanto máquina de linguagem — ainda que aberta, em níveis variáveis, para o mundo. Jorge Amado tinha uma capacidade imensa de imaginar fatos, mas fabulava mal quando escrevia. Não sou que digo, o Graciliano que, certa vez, chegou até ele e disse “Jorge, invejo muito sua imaginação, eu não tenho nenhuma. Mas... Por que você não aprende a escrever?” . Ou seja, se o cara imaginou ou se roubou da realidade (como Joyce, um fabuloso ladrão de realidades), isso só importa pra essa coisa poderosa que há em nós, a curiosidade pulsional pela vida alheia (também conhecida por fofoca), que tão pouco tem a ver com literatura.
Sobre esse assunto da escrita como autobiográfica, acho muito esclarecedor, fundamental e divertido um trecho da biografia do Amoz Oz, que diz o seguinte: “Tudo é autobiográfico: se um dia eu escrever uma história sobre o caso de amor entre madre Teresa de Calcutá e a Princesa Diana, com certeza vai ser uma história autobiográfica [...] O mau leitor quer sempre saber, e rápido, o que realmente aconteceu, qual é a história que está por trás, do que realmente se trata, quem está contra, quem está contra quem, quem afinal transou com quem.”
Bom, por outro lado, penso que afirmar a obra como biografia, também é afirmá-la como tanatografia — pois o corpo que vive e goza também é o mesmo corpo que morre e, uma vez que estamos na linguagem, só escrevemos a partir da morte, que retroage sobre nós, e nos impulsiona, exige de nós o trabalho de tornar a vida minimamente viável, não aplacando seus núcleos infernais, mas fazendo disso alguma coisa que nos coloque de pé.
Pra falar da biografia como tanatografia, é fundamental falar de um romance do Serge André. Poucos sabem, mas Serge André (1948-2003), o psicanalista, escreveu um romance que se chama Flac ( tenham calma, acreditem em mim, pode parecer que sim, mas não estou mudando de assunto), e fez também um ensaio, publicado como posfácio desse romance. No posfácio ficamos sabendo que André teve um câncer (um assunto que eu adoro, .mesmo., é só ler meu último livro), um câncer que foi diagnosticado em 1992, os médicos lhe deram 3 meses de vida (como se os médicos pudessem dar vida a alguém).
Mesmo com o prognóstico tão definitivo, resolveram tratá-lo com quimioterapia. 2 meses e tratamento e S. André se define como “um resíduo humano mais morto do que um morto”. 6 meses depois, ainda mais morto, o tratamento não resulta em melhora alguma. O médico, então, lembrou-se que André havia manifestado o desejo urgente de escrever um livro. O tratamento foi suspenso, e 3 meses após, ele recupera uma quota de força suficiente pra iniciar a escrita de um livro adiada por 25 anos.
André escreveu o livro com um entusiasmo incomum, com uma disposição crescente, escrevia em média durante 5 horas diárias, de modo que terminou o livro em 4 meses. Bem, Flac termina com o seguinte trecho:
“ Deserto. Céu azul que se apoia sobre a areia. Um deserto ocre e um deserto azul que se dividem no horizonte. E o vento varre o solo com uma nuvem de pó. O deserto infinito se levanta em torvelinho sobre o firmamento. Ou talvez o contrário. Nesta volúvel brisa luminosa recortando-se sobre um fundo tão azul, um velho maltrapilho está sentado numa cama oscilante, com pés de metal enferrujado. Um velho. Na mais completa indigência, que só não é completa porque ele está só, como uma estátua de pó no calor vazio. Sem outra posse que o seu livro, livro tão velho quanto ele próprio, decifra as páginas com paciência, disputando-as com o vento. Escutem. Escutem. É uma manhã como todas as manhãs. No deserto amarelo, no céu demasiado azul, tudo envolto pelo vazio do vento, escuta-se o canto de uma voz nua. Uma voz que se perde e que persiste. Eu a escuto, eu não a escuto, eu a escuto. Chega-se ao final. Nunca quis outra coisa senão esta manhã. Quero dizer, não, nada, ninguém. Adeus.”
Esse trecho final torna quase imperativo que façamos uma analogia entre o velho no deserto, tentando decifrar um livro que ele mesmo escreveu, tentando fazer esse deciframento contra o vento, contra a areia nos olhos, contra sua indigência, é impossível que não façamos uma analogia entre o velho e a biografia, ou com a tanatografia de Serge André, analogia entre o homem de 45 anos, com câncer, em estado terminal, trabalhando intensamente, vivo e vívido, na escrita de um livro que, segundo o próprio autor, era escrito como se a escrita devesse começar com a morte. E, de fato, não é uma analogia forçada, é um dos casos em que a biografia pode ajudar a entender a obra e a criação da obra, mas não se tomarmos a biografia (ou tanatografia) num sentido ingênuo — afinal, Serge André nunca foi um velho maltrapilho, no deserto, sobre uma cama de metal, tentando decifrar um livro que ele mesmo escreveu. O próprio André, nos esclarece o sentido de sua tanatobiografia:
“Flac é autobiográfico a mil por cento. Quero dizer: autobiográfico em cem por cento, mais novecentos por cento que eu acrescentei. Extraí da minha história uma série de elementos: acontecimentos, recordações, frases ou palavras isoladas, detalhes por vezes ínfimos que se gravaram em minha memória, coleção heteróclita cujo único ponto comum e cuja única importância verdadeira reside no caráter enigmático com que se me apareceram”.
Pois bem, vejam como sou bom pra encontrar pessoas que escrevem coisas de um modo muito mais interessante que eu, pra falar de uma experiência e de uma perspectiva que eu reivindico serem minhas. Em Sade, Fourier, Loyola, Barthes diz algo que se articula ao que Serge André diz em seu ensaio. Barthes diz que o autor não aquilo que é descrito por nossas instituições (seja a história, seja a filosofia, seja a igreja). O autor não é também o protagonista de uma biografia, no sentido de fazer da obra uma espécie de Revista Caras pessoal. O autor é um plural de encantos, o suporte de alguns detalhes tênues, um canto descontínuo em que lemos a morte com mais agudeza do que na epopeia de um destino, o autor não é uma pessoa (civil, moral), o autor é um corpo.
O autor é um corpo, diz Barthes, e S. André diz que uma obra é mil por cento autobiográfica porque é uma escrita a partir de acontecimentos menos, ou mais insignificantes, porém enigmáticos. ... Bom, prossigo citando Barthes, de um modo distorcido e que me convém, pra dizer que a escrita literária é desencadeada por algo que ressoa no corpo, a incidência de um luto, de uma perda como que única, a perda de qualquer coisa que seja sentida como uma subtração do corpo, tal perda, radical e imprevista, produz uma dobra decisiva, um meio do caminho da vida (que nada tem a ver com uma cronologia), mas com uma rachadura que divide a vida em duas, um antes e um depois, um antes e um agora em que se “descobre a morte como real” (p.5) — e é a partir dessa dobra única, que um homem se torna um autor, um criador da palavra, alguém que padece de uma espécie de súbita revelação: “O que fazer com este corpo? Ora, é preciso escrevê-lo”.