[a Raymond Roussel]
1
A vida inteira. A vida inteira, miúdos e inimagináveis, não havia meio-termo para eles. Simplesmente grisalhos e de bigode raspado sorriam toda vez que alguém acenava. Sorriam diante dos embaraços da vida inteira. Boris diminuíra o seu sentimento por Elisabeth até que ele coubesse numa caixinha de fósforos. Um milhão de anos durou este amor e não apenas um momento. Saltaram por cima da poça d’água e depois bufaram furiosos com os focinhos negros e as botas enlameadas. Então, Boris acariciou o queixo de Elisabeth e, sem jeito, confessou que a amava desde a adolescência. Em um crescente de horror, ela também tocou-lhe o queixo e vomitou.
“Estou vendo, Boris”. E pareceu sem saída, diante do assédio. Fiquei sem graça de ouvir tudo aquilo e acocorei-me entre os plátanos para não ver mais a cena.
“Como disse? Questionou Boris. “Assim não dá. Ainda estamos aqui e não resolvemos coisa nenhuma até agora”
“Qual o quê?” Disse Elisabeth, deitando-se com um cigarro no canto da boca. “Por que você não repete o que disse?”
Havia um conluio carnal a impedir a ação de ambos. Cocei a barba e, sem a menor certeza de nada, não ousei contradizê-los.
“Está ótimo”. Disse Boris. “Não creio que você ache algo em mim. Fazendo assim, só ficará mais solitária do que antes”.
2
Era vermelha, balançando no pasto. Um passarinho veio descendo inclinado e pousou nela. Luster ameaçou jogar-lhe uma pedra. A bandeira balançava entre a grama ensolarada e as árvores. Agarrei a cerca.
“Para com essa choradeira.” disse Luster. “Se eles não querem voltar, não posso fazer nada. Se você não parar de chorar, a mamãe não vai fazer a festa de aniversário. Se você não parar, sabe o que vou fazer. Vou comer o bolo todo. Comer as velas. As trinta e três velas. Vamos lá. Vamos lá no riacho. Preciso achar a minha moeda. Quem sabe a gente não acha uma bola também. Olha lá. Eles estão lá. Lá longe. Olha.” Ele veio até a cerca e apontou com o braço. “Olha só: eles não voltam mais não. Vamos.”
Seguimos junto à cerca até chegar ao jardim, onde as nossas sombras estavam. A minha sombra era mais alta que a de Luster. Chegamos no lugar quebrado e passamos por ele.
“Espera aí.” disse Luster. “Você se prendeu naquele prego outra vez. Será que você não consegue passar por aqui sem se prender no prego?”.
In: Desimagens (Bookess, 2018).