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Série de Jonathan Wolstenholme |
circunscrições sobre a oratória líquida
o que a boca aprende pela língua?
um caroço de garganta, uma palavra-pedra,
um desapego total quanto à ordem
cronológica dos fatos
minuto adentro o que
antes tivera sido um corredor
de largas possibilidades:
então havia terminado o amor,
mas como propriamente terminá-lo?
a boca já se doía em úlceras,
assustados como quem chamasse a
extrema unção ainda vivos,
o futuro dolorindo de possibilidades
ambos ensaiando outras vozes,
buscando novas mortes,
e contornando o tédio com a presença pueril um do outro
ambos decepcionados
pelo que se revelava o habitual,
uma corrente de estímulos cada vez mais ralos,
água cada vez mais morna a saciar menos
e menos a sede
contentemo-nos então com essa
torrente mínima
pois que no meio da tarde,
sem razão aparente,
começou-se um acúmulo de provocações
navegavam-se a esmo
cheios de más intenções
e eis que ela se doeu um pouco:
descobriu-se impossibilitada de fugas
alinhemos a memória
que está para o leito assim como um
baú de relíquias ao explorador de destroços
confiemos portanto nesse
mapa incerto há muito traçado
e se nos acostumamos a seguir
a rota da cultura do acúmulo
não coloquemos a culpa nos discos e romances
assumamos portanto uma ignorância total
sobre nosso próprio corpo
(recordemos que na prisão da carne jaz o espírito)
discursemos sobre esse rio de contingências,
a preamar pulsante:
não sabemos mais quando parar
e portanto continuamos cada vez mais pungentes,
pouco a pouco menos confiantes
eis que ambos achavam-se no meio da sala
(no meio da vida)
sem rotas de apoio e
desconfiados da própria capacidade discursiva,
incertos da imersão da palavra-eco sob
qualquer tipo de solo, calaram-se de tão
ocos
era qualquer coisa digna do estio:
a morte dos rios não é a mesma que
nossa própria morte porém enfim morre-se
ambos emudecidos ouvindo a casa
sobreviver à noite, voltemos à gênese
do desassossego
uma única lembrança vívida
a se acavalar pelas vísceras – ele havia
aberto novamente sua única ferida
agora exposta
transbordar-se agora
de quê e em qual momento?
o percurso já perdera seu próprio prazo
tudo abundantemente custoso e complexo,
uma algiba mínima de ilusões a ser carregada
na envergadura do peito
ele já havia passado um café denso
e esperava-a sentado na mesa da cozinha
mastigando um pedaço de ontem
olhavam-se como se pela primeira vez
depois de um susto, sem qualquer intenção
de reparo
apaixonados pela correnteza de imagens,
um ensaio para a ancoragem da afluência,
parados e no entanto n’um escoamento de desassossegos,
ensaiavam fugas dentro da boca cerrada
como se
assumindo-se vários
assumissem-se de abismos e grotas,
únicos e no entanto similares pela
emancipação das vazantes
já admitiam dentro de si uma confluência de cios
diversos projetos sustém-se além do ancoradouro:
no fim nem notavam aonde a areia encharcada perdia pé
derramavam-se de lastro,
a densa procura pelo horizonte pênsil,
tomavam a terra inteira de molências,
pondo ao fim qualquer possibilidade de cova
cada um sua onda em linha reta,
testando a densidade do licor fluido:
água alcoólica de tantas direções que em
nenhuma se resume ou se contenta
um constrangimento total
tomava a casa de flutuações possíveis
descobriam então que o rio era fraco,
que no final estancavam-se n’um reservatório escasso,
no final a geração do fluxo, sem contingentes
decidiram-se de quietos,
acima das cabeças apenas a cintilação parcial
de um ou outro sol minguante
nem dava tempo para a sintaxe da seca
para um dia,
quem sabe,
pelo correio de mensagens:
uma torrencial de verborragias
signo
o desejo é a
necessidade que
enlouqueceu
significado
a cobra controla-se por
todo o tempo : exceto quando
prestes a abocanhar a presa,
ao deixar que um desejo
- há muito reprimido -
tome posse de tudo,
vai abrindo a mandíbula
rasgando-se ela própria,
e quanto mais dor sente
mais sabe-se retomando as rédeas
da metade víscera,
rasgando a lateral dos lábios
como se o grito
ecoasse pelos tecidos nervosos
e quanto mais sangue,
mais entrega, quanto mais
compulsão mais pulso,
rasga-se para, no mínimo,
profanar-se um pouco.
rasga-se somente para
sentir-se viva.
sangra somente para
sentir-se viva.
sangra somente para
saber-se cobra.
significante:
seis e quinze da tarde,
engarrafamento na curva,
há um corpo caído no asfalto,
e nosso olho fixo no morto
como se fôssemos nós
livres no chão,
em pleno
voo.
a escrita comporta a filologia românica,
e agora façamos a crítica histórico-literária
da poesia local:
quais circunstâncias rodeiam
a integridade da tradição maior?
língua criada no coche?
permissões e mais permissões
à língua. mestres da retórica: seus
tratados técnicos fragmentam
e tornam vulgar o corpo-verbo
e dialetos.
criemos a inestética do verso,
mentira e montagem,
palha, eco.
que da pedra faça-se um percurso
que resultará ou não em pó,
calcário sonhando a teoria
da modernidade.
o texto como dispositivo:
vetor de discursos.
texto-pronto.
lorem
ipsum.
conto de Ares
surpreendeu-se
gostava do jeito que o peão
colocava os ossos de galinha na boca:
chupava-os com voracidade,
era luxúria
pegou-se cogitando que
contasse tudo ao analista,
sobre as fraquezas, os desmaios,
fogo em mato alastrado,
sobre desejos íntimos
e olhares públicos
incêndios sem feridos,
vagões vazios e combustíveis fósseis
ao reto, nos olhos, um oásis árido
os lábios queimando ao sol e sobre eles
pele e nervos, óleo:
queres um guardanapo?
entreolharam-se
dois bois,
colhões e uma batalha de conhecimentos:
hiroshima mon amour e o jeca
interrompem-se do fogo,
emasculam-se
brasa final de fósforos,
o desejo torna-se minúsculo,
carvão no tórax, dermatites,
heterofagias.
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Rafael Zené educador, escritor e pesquisador. Possui graduação em Comunicação Social, especialização em Comunicação e Semiótica, especialização em Literatura Contemporânea e Mestrado em Processos Artísticos Contemporâneos. É coordenador e professor do curso de Publicidade e Propaganda na UNIFEBE (Brusque/SC), além de coordenador do NPCC - Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Cultura. Em 2018, coordena a coluna jornalística Zona Autônoma no site do Jornal O Município, além do UNIFEBE DEBATE. Como escritor, publicou os livros: A Questão da Andorinha (2012 / Poesia), Corpo Oral (2015 / Contos) e Leito Invisível (2015 / Poesia). Atualmente, trabalha em novo livro de poemas intitulado "Ficção, 3%". Pessoalmente, prefere quando arde-se em literatura artivista - é onde amplia seus afetos.