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4 poemas de "Ficção, 3%", novo livro de Rafael Zen

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Série de Jonathan Wolstenholme

circunscrições sobre a oratória líquida

o que a boca aprende pela língua?
um caroço de garganta, uma palavra-pedra,
um desapego total quanto à ordem
cronológica dos fatos

minuto adentro o que
antes tivera sido um corredor
de largas possibilidades:
então havia terminado o amor,
mas como propriamente terminá-lo?

a boca já se doía em úlceras,
assustados como quem chamasse a
extrema unção ainda vivos,
o futuro dolorindo de possibilidades

ambos ensaiando outras vozes,
buscando novas mortes,
e contornando o tédio com a presença pueril um do outro

ambos decepcionados
pelo que se revelava o habitual,
uma corrente de estímulos cada vez mais ralos,
água cada vez mais morna a saciar menos
e menos a sede

contentemo-nos então com essa
torrente mínima

pois que no meio da tarde,
sem razão aparente,
começou-se um acúmulo de provocações

navegavam-se a esmo
cheios de más intenções
e eis que ela se doeu um pouco:
descobriu-se impossibilitada de fugas

alinhemos a memória
que está para o leito assim como um
baú de relíquias ao explorador de destroços

confiemos portanto nesse
mapa incerto há muito traçado
e se nos acostumamos a seguir
a rota da cultura do acúmulo
não coloquemos a culpa nos discos e romances

assumamos portanto uma ignorância total
sobre nosso próprio corpo

(recordemos que na prisão da carne jaz o espírito)

discursemos sobre esse rio de contingências,
a preamar pulsante:

não sabemos mais quando parar
e portanto continuamos cada vez mais pungentes,
pouco a pouco menos confiantes

eis que ambos achavam-se no meio da sala
(no meio da vida)
sem rotas de apoio e
desconfiados da própria capacidade discursiva,
incertos da imersão da palavra-eco sob
qualquer tipo de solo, calaram-se de tão
ocos

era qualquer coisa digna do estio:
a morte dos rios não é a mesma que
nossa própria morte porém enfim morre-se

ambos emudecidos ouvindo a casa
sobreviver à noite, voltemos à gênese
do desassossego

uma única lembrança vívida
a se acavalar pelas vísceras – ele havia
aberto novamente sua única ferida
agora exposta

transbordar-se agora
de quê e em qual momento?
o percurso já perdera seu próprio prazo

tudo abundantemente custoso e complexo,
uma algiba mínima de ilusões a ser carregada
na envergadura do peito

ele já havia passado um café denso
e esperava-a sentado na mesa da cozinha
mastigando um pedaço de ontem

olhavam-se como se pela primeira vez
depois de um susto, sem qualquer intenção
de reparo

apaixonados pela correnteza de imagens,
um ensaio para a ancoragem da afluência,
parados e no entanto n’um escoamento de desassossegos,
ensaiavam fugas dentro da boca cerrada

como se
assumindo-se vários
assumissem-se de abismos e grotas,
únicos e no entanto similares pela
emancipação das vazantes

já admitiam dentro de si uma confluência de cios

diversos projetos sustém-se além do ancoradouro:
no fim nem notavam aonde a areia encharcada perdia pé

derramavam-se de lastro,
a densa procura pelo horizonte pênsil,
tomavam a terra inteira de molências,
pondo ao fim qualquer possibilidade de cova

cada um sua onda em linha reta,
testando a densidade do licor fluido:
água alcoólica de tantas direções que em
nenhuma se resume ou se contenta

um constrangimento total
tomava a casa de flutuações possíveis

descobriam então que o rio era fraco,
que no final estancavam-se n’um reservatório escasso,
no final a geração do fluxo, sem contingentes

decidiram-se de quietos,
acima das cabeças apenas a cintilação parcial
de um ou outro sol minguante

nem dava tempo para a sintaxe da seca

para um dia,
quem sabe,
pelo correio de mensagens:
uma torrencial de verborragias


 signo, significado, significante


signo

o desejo é a
necessidade que
enlouqueceu

significado

a cobra controla-se por
todo o tempo : exceto quando
prestes a abocanhar a presa,
ao deixar que um desejo
- há muito reprimido -
tome posse de tudo,
vai abrindo a mandíbula
rasgando-se ela própria,
e quanto mais dor sente
mais sabe-se retomando as rédeas
da metade víscera,
rasgando a lateral dos lábios
como se o grito
ecoasse pelos tecidos nervosos
e quanto mais sangue,
mais entrega, quanto mais
compulsão mais pulso,
rasga-se para, no mínimo,
profanar-se um pouco.
rasga-se somente para
sentir-se viva.
sangra somente para
sentir-se viva.
sangra somente para
saber-se cobra.

significante:

seis e quinze da tarde,
engarrafamento na curva,
há um corpo caído no asfalto,
e nosso olho fixo no morto
como se fôssemos nós
livres no chão,
em pleno
voo.



 cabral e freitas


a escrita comporta a filologia românica,
e agora façamos a crítica histórico-literária
da poesia local:

quais circunstâncias rodeiam
a integridade da tradição maior?
língua criada no coche?

permissões e mais permissões
à língua. mestres da retórica: seus
tratados técnicos fragmentam
e tornam vulgar o corpo-verbo
e dialetos.

criemos a inestética do verso,
mentira e montagem,
palha, eco.

que da pedra faça-se um percurso
que resultará ou não em pó,
calcário sonhando a teoria
da modernidade.

o texto como dispositivo:
vetor de discursos.

texto-pronto.

lorem
ipsum.


conto de Ares


surpreendeu-se

gostava do jeito que o peão
colocava os ossos de galinha na boca:
chupava-os com voracidade,
era luxúria

pegou-se cogitando que
contasse tudo ao analista,
sobre as fraquezas, os desmaios,
fogo em mato alastrado,
sobre desejos íntimos
e olhares públicos

incêndios sem feridos,
vagões vazios e combustíveis fósseis

ao reto, nos olhos, um oásis árido
os lábios queimando ao sol e sobre eles
pele e nervos, óleo:

queres um guardanapo?
entreolharam-se

dois bois,
colhões e uma batalha de conhecimentos:
hiroshima mon amour e o jeca

interrompem-se do fogo,
emasculam-se

brasa final de fósforos,
o desejo torna-se minúsculo,
carvão no tórax, dermatites,

heterofagias.





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Rafael Zené educador, escritor e pesquisador. Possui graduação em Comunicação Social, especialização em Comunicação e Semiótica, especialização em Literatura Contemporânea e Mestrado em Processos Artísticos Contemporâneos. É coordenador e professor do curso de Publicidade e Propaganda na UNIFEBE (Brusque/SC), além de coordenador do NPCC - Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Cultura. Em 2018, coordena a coluna jornalística Zona Autônoma no site do Jornal O Município, além do UNIFEBE DEBATE. Como escritor, publicou os livros: A Questão da Andorinha (2012 / Poesia), Corpo Oral (2015 / Contos) e Leito Invisível (2015 / Poesia). Atualmente, trabalha em novo livro de poemas intitulado "Ficção, 3%". Pessoalmente, prefere quando arde-se em literatura artivista - é onde amplia seus afetos.


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