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Fotos de Eder Jean |
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Nossa casa era como um ninho de japiim. As redes ocupam todos os lugares daquele lugar de nome estranho, não sabíamos dizer nosso lar. A morada de cada um é pesada demais. Outras vezes, leves. Lúcia entrava em casa com um bravio de fogo ainda vivo, levava ao fogão de barro, procurava entre as panelas pretas a que melhor poderia cozinhar o peixe. Corria no quintal e pelava algumas ervas, com sal e água cozinhava o peixe. Fim de tarde ou início de dia? Estávamos em qual parte do mundo naquela hora? Eu a observava sem parar, havia uma ocupação nos meus olhos que buscavam meus irmãos. Era fim de tarde, pois papai chegava porre em casa e queria quebrar cada parede da casa. Mamãe olhava a imagem impressa numa folha, era um santo. Acredito que a imagem olhava de volta para ela. Ajudava-lhe como podia. Mamãe pensava muito em um santo real, queria uma imagem de verdade. Achava que assim os milagres seriam mais rápidos. Sonha dentro de si. E eu a observava. O Zé entra pela porta e desequilibra tudo, tinha nas costelas ou talvez nas costas, um peso que não sei muito bem. Ele era torto em sua maneira de ser. Mas era quem mais demostrava afetos por mim. Era fim de tarde na vertigem dos meus olhos. Lembro-me da rede que tínhamos que tirar, corro, não espero papai chegar. Vou chamando um por um dos meus irmãos.
A caminho da beirada passamos por cimas das folhas caídas do açaizal, pulo por cima de umas, piso em outras, ao que entendemos por certo, o melhor seria era evitá-las, pois os escorpiões dormiam em sua parte de vazio. O mesmo acontecia com o coração de papai? Deixava os insetos habitarem seus átrios? A impressão era que todos nós dormíamos um mesmo longo sono, e que despertar era uma forma de morrer. Pedro foi quem primeiro entrou na canoa, Zé vinha logo atrás, Tati ainda muito pequeno segurava minha mão. Saiamos juntos atrás da rede. As folhas que desciam com o rio eram nosso termo. Limpar a rede dava um trabalho árduo. Só não estava conosco nosso irmão mais velho. Puxávamos a rede com a força que nossos braços eram capazes de ter. Inventávamos mais um pouco de força e puxamos na fé de haver peixes a ser coser nela. A primeira escama brilhante era vista. Refletia em nossos olhos e como resposta refletia ao rio. Éramos uma sincope. A entonação de luzes a beira duma noite a cair. Assustávamos a nós mesmo, e fazíamos a tarefa com mais agilidade. Dentro da canoa os peixes e as redes, as folhas com seus tamanhos todos. Uma chamou a atenção, vi que até os peixes lhe olhavam, guardei no cós do meu calção.
Já estava nos olhos da mamãe o reflexo das escamas dos peixes, que refletiam em nossos olhares e depois de volta ao rio, a fim de completar o ciclo nos olhos dela. Ela já sabia ter a farta alegria de poder ter no peito o orgulho que é comer no dia seguinte. A rede ficava suja na canoa.
O dia começava cedo. Papai era quem acordava a casa. Pedi que Lúcia lhe fizesse o café o quanto antes. Queria que toda aquela juntada de descarto soubesse servir-lhe de bom grado. Acordou e foi ver a canoa, queria ir ver um conhecido ainda nessa manhã. Viu a rede cheia de folhas e pedaços pequenos de pau. Voltou para casa, no caminho pegou um talo. Saiu a queimar nossa pele com sua raiva. Queimava de nós qualquer espírito de preguiça. Papai era o próprio juízo final? Minhas costas inchavam. Meus pequenos dedos se ocupavam a tirar as folhas de entre as armadilhas daquele invento.
Vinha no vento ou multiplicava-se com o nascer do dia – vigor nas veias. Semoventes nas horas, o barro acompanhava nossos pés, amarelados e frágeis. A pele de nossa transparência morena. Córregos desciam com força, meus pensamentos aonde? Na criação dos fenômenos invisíveis ou dos visíveis? Papai sempre dizia de seu sonho de ter um boi. Poderia eu roupar um bovino a ele? Nessa minha cabeça de outrora era o erro quem dominava. És tu diziam as folhas. E depois na contradição negavam. Corria sem parar duma ponta a outra daquele bosque insano. Devia ir ver mais os parentes.
Descia a escada dos fundos da casa de minha avó, e ela na beira do jirau. Nos olhos dela as lembranças do mel de cana que faziam no engenho. Falava da avó preta que atravessou de muito longe. Dela os olhos brancos eram como luzes. Negra. Negra e forte. Nunca virá nem um homem tão forte quanto aquela preta. Deu a luz a todos nós. Seus olhos eram dos dias de maré alta? Ou vinham juntos da maré morta? Ambas? Ambos os dias?
Nos segredos que tinham a serem meus, um era de felicidade. Fazia nas raras horas de distração meu barco de miriti. Será dele a próxima descida da ribanceira quando a chuva fizer da várzea braços de rios? Descerá como rã? Não saberá viver sem meus dedos brutos a lhe consertar talas? Ou saberá viver nos concertos dos bichos ao escuro dos rios? Desconhecerá a festas das mucuras? Abraçará sem força o candiru?
Minhas costas ardendo me dizem algo. Trago a boca as unhas dos pés, fico a roer. Uma folha passa lentamente por minha memória. Pego um terçado e me sinto disposto a derrubar todo o verde. Saberão sofrer minhas dores?
Lúcia pegou uma faca para cortar o peixe. O peixe aberto era um poema ao sol. O sal devagar penetrava a carne branca, buscava a transparência e atravessava os olhos. A escama crescia como um fruto. Minha irmã como terra. Saberá ela crescer passarinhos e descer ao poço a juntar amuré? Os meninos estão em algum lugar distante. A distância parecia ser algum tipo de substância precisa nos dias. Um fermento ao crescimento. Acorda era esticada. Um de nós amarrava o barco de nossa condução. Era o sonho de seguir a maré. Chegar até a baía. O ir a pé até a Mangabeira. Voltávamos a nós mesmo. Como uma canção leve no fim de tarde. O coro dos anfíbios. Rãs no meu coração abriam clarões. Tombavam a densa mata do medo. Uma aleluia entre os fantasmas. Não se sabia muito de proximidade, eram as palavras ditas no silêncio que nos aproximavam. Porém, de quem? De nós mesmos? A palavra era um fogo sem combustível, quase magia dentro da cobra. Caminhando os pés chegavam perto. Uma sombra descia com a fraca luz entre as folhas de palmeira. Era tio Bento. Papai e mamãe estavam fora. Vinha olhar os sobrinhos. Tinha uns olhos cuidadosos sobre minha irmã. Na calada um fruto seco estourava numa árvore sem definição. O camarão a secar no paneiro ao lado da casa. Os pés seguiam sobre a falta de descrição.
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Marcos Samuel Costa é natural de Ponta de Pedras - Ilha de Marajó - Amazônia brasileira. Atualmente cursa Serviço Social UFPA e mora em Belém do Pará. Vive perdido no caos da cidade grande e entre livros de poesia. É membro correspondente da Academia de letras do sul e sudeste paraense e da ASPEELPP-DJ. Autor dos livros: Sentimentos de um século 21 (Multifoco Editora, 2014), Titulado amor (editora Literacidade, 2014), em coautoria com dois amigos: Interpoética (Big Times editora 2015), Uma semana de poesia (Editora Penalux 2016). Participou de mais de 20 antologias literá¬rias, entre elas I, II, III & IV Anuário de Poesia Paraense e publicou nas revistas Mallarmargens, contemporArtes, Marinatambalo, Gueto e etc. E mantém o blog Someplace (2008-2018) onde divulga sua produção. E faz parte da equipe editorial do Jornal Crescendo.