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"A reinvenção da língua em 'Rocketman', de Rique Ferrári", por Alexandra Vieira de Almeida

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A reinvenção da língua em Rocketman, de Rique Ferrári

Alexandra Vieira de Almeida – Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)

Temos diante de nós um livro dialógico, um encontro de artes que se mesclam no desenho da beleza. O livro de poemas Rocketman (Patuá, 2017), de Rique Ferrári contém 39 poemas e 22 ilustrações que constroem combinações inusitadas entre desenho e imagem poética. Os primorosos poemas deste autor gaúcho são desenhados imageticamente, aliando a forma ao conteúdo. As ilustrações de tatuadores famosos encerram uma variedade de estilos que tangenciam a linguagem da poesia, pois diante de nós, temos desenhos que falam, que discursam com nosso interior mais secreto. O casamento entre poemas e ilustrações se dá através do virtuosismo que cria linguagens em preto e branco ou de forma colorida, mostrando a ideia de contenção ou transbordamento dos sentidos. As ilustrações belíssimas destes tatuadores famosos nos apresentam o quanto o intercâmbio entre as artes pode ser produtivo, unindo o figural ao lingual.
O título do livro que é homônimo à música de Elton John, Rocketman, nos vem revelar a solidão de um ser que anda entre os povos. O sujeito em meio à multidão. A canção de Elton John fala de um homem que foi ao espaço e se sente só com saudade da Terra. O livro de Ferrári é dividido em três partes que se relacionam pelo seu teor cotidiano, mas que são bem diversas entre si, deixando cair por terra o mito de que o verdadeiro livro tem de ter uma unidade temática bem fechada. Rique Ferrári traz no seu livro a riqueza da pluralidade temática ao abordar diferentes aspectos da realidade. A primeira parte, “América”, aborda o lugar, a delimitação do território externo, qual sua visão sobre o que o circunda, que foi a experiência do poeta em viagens por países da América do Sul, percebendo detalhes nunca antes vistos no seu confronto com o outro. O poeta aqui em questão nos salienta como o geográfico irrompe no tempo da poesia. O tempo da sua poesia é dual, revelando a ambiguidade da forma. Ele faz versos longos que ao mesmo tempo explana de forma ágil e não mecânica.
O poeta por ora aqui estudado vai do mínimo ao máximo com extrema facilidade, dominando os estilos variados de se poetar. Na segunda parte, intitulada “Amarelo”, temos haicais fantásticos, traduzindo o humor das pequenas coisas. Rique Ferrári reinventa a língua, fazendo-nos lembrar dos versos de Cecília Meireles que disse: “A vida só é possível/reinventada”. A poesia dele não tem quase pontuação nos levando ao fluxo da consciência de suas confissões criativas e originais. A pouca pontuação nos vem falar da urgência do transbordar das palavras e dos afetos que não criam uma pausa, mas um jogo frenético como o próprio real se mostra para nós. A agilidade em meio a versos longos é o equilíbrio perfeito de seu intenso paroxismo.
O autoconhecer-se para ele é também um olhar para fora e não apenas para dentro, pois o espelho é seu reflexo de dentro para fora e de fora para dentro. A música de Elton John expõe a solidão de um homem no espaço. A terceira parte do livro de Ferrári se chama “Rocket Man”, um único poema longo por sua extensão, que ao contrário da primeira parte, uma viagem exterior, vem nos falar de uma viagem interior do eu lírico que supervaloriza a humanidade que reside em seu ser. O poeta gaúcho fala de temas tradicionais e essenciais (das regiões que percorreu) numa linguagem poética. Aborda o nosso cotidiano e dos outros de forma complexa. O seu virtuosismo apresenta imagens inusitadas e impactantes, produzindo um livro que dialoga com a tradição e com o pós-moderno. Eis o intenso paroxismo de sua poesia que ricamente dialoga com as várias linguagens, sendo também cosmopolita ao utilizar também a língua espanhola e inglesa. A literatura de Rique Ferrári busca complexificar, desafiar o leitor para novos e originais sentidos.
Com combinações complexas e nada fáceis, seu livro aponta para imagens opostas que se juntam numa relação dinâmica e imprecisa, trazendo para os leitores o mistério da própria poesia. Com temas perenes, escreve sobre a transitoriedade das coisas, o esfumar-se nas entrelinhas do tempo. O conteúdo sendo universal em uma forma vanguardista cria um elo rico e magistral em seu livro. O desenho que se mostra em sua poesia imagética e ao mesmo tempo confessional nos apresenta o malabarismo linguístico que produz saltos imensos no seu dom de poetar. No poema “Rocket Man”, a terceira parte, temos uma belíssima ilustração em que o homem desenhado em preto e branco abre sua roupa para deixar sair de seu interior vários planetas em tom azul. A poesia aliada a este desenho começa assim: “-daqui pode-se ver a cidade voadora/e se estivermos juntos, estaremos completamente in.” Este adentrar-se no outro nos vem dizer da intensidade do mundo em nosso interior. O outro e nós não nos calamos. A comunicabilidade da linguagem entre os seres nos faz planetas que giram ao redor de um único centro, a massa vermelha de nosso coração, que pulsa, apesar da agressividade do mundo. De sutilezas se faz essa viagem para dentro do nosso corpo que interroga o externo, mesmo que esse esteja a anos-luz de nós, em outras vastidões, como se nosso ser buscasse a imensidão do universo. Nós, em preto e branco, precisamos abrir a chave da solidão claro-escura para saltarmos todos os planetas azuis, ou seja, a multiplicidade se expande no nosso centro escolhendo a via da linguagem comunicativa. Parece isto a nos dizer o livro de Rique Ferrári como um todo. Assim, a unidade questionadora de seu livro percorre todo o esqueleto estrutural de sua obra, apesar de apresentar poesias variadas e, ao mesmo tempo, dinâmicas entre si.
Portanto, o desenho criado por sua poesia plural e complexificadora dialoga com as ilustrações mais belas e comunicativas, relacionando o imagético e o linguístico. Seu livro é uma raridade em meio à poesia contemporânea, algo diferente em nossa costumeira forma de criar versos. Seus versos labirínticos nos vem falar de uma busca incessante que se mostra entre o dentro e o fora, o tempo do ser e o geográfico. O tempo-espaço de uma presença inaugural de se estar no mundo, de se experienciar o que nos circunda. Assim, seus poemas juntamente com as ilustrações destes famosos ilustradores revelam o belo jogo das artes que não se anulam, mas se fiam numa rede inclusiva de sugestões e maravilhamentos. A partir do desenho, ele reinventa a língua, produzindo uma obra ímpar em nossa literatura.



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Alexandra Vieira de Almeidaé poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atualmente é professora da Secretaria de Estado de Educação (RJ) e tutora de ensino superior a distância (UFF). Tem cinco livros de poesia, sendo o mais recente “A serenidade do zero” (Penalux, 2017). Tem poemas traduzidos para vários idiomas.

Autor do livro Rocket Man, Rique Ferrári  nasceu em 2017, versão beta de um sujeito nem aí.  É empresário, sommelier, professor, especialista em arte pré-colombiana, filósofo, neologista na língua portuguesa e espanhola, dançarino, colecionador de pedrinhas da rua, campeão gaúcho de skate amador, mágico, churrasqueiro, piadista, voluntário de ONG, dupla de bocha do Adair, marido de aluguel, jardineiro, poeta, beijoqueiro, mentiroso e tal.



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