Arca de Babel
Era uma vez duas histórias:
a cidade em construção
era este barco à deriva.
Nele, as línguas, enroscadas,
pares híbridos e férteis,
cresciam e multiplicavam-se.
Um abarcar, muitas arcas:
esta cidade à deriva
é balbúrdia e tradução.
* * *
Arranha-céu
(para Lu Menezes)
O céu, arranhado, verteu
toda a sua transcendência
e agora
ficou
vazi
o
* * *
Palavra estrangeira
Entre palavras e coisas,
há sempre alguma distância:
na palavra, a coisa é outra
na coisa, a palavra nem é.
Mas essa coisa sonora,
que a palavra é também,
é uma forma de armadilha
pra pegar uma outra coisa.
Presa em palavra estrangeira,
uma coisa é ainda mais outra
menos diversa dela mesma
que do meu próprio silêncio.
Mas a palavra estrangeira
que tardiamente apreendi
em prévia palavra estrangeira
torna-se coisa ainda mais diversa
prendendo-me assim à primeira.
Coisa apreendida no tempo,
toda palavra é armadilha
onde eu, ela ou isto
(a coisa pensante = X)
capturada, captura-se:
toda palavra é estrangeira.
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Patrícia Lavelle nasceu no Rio de Janeiro, é professora do Departamento de Letras da PUC-Rio, atuando no Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade. Doutora em filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, onde morou entre 1999 e 2014, tem livros de ensaios publicados na França e no Brasil. Como poeta, publicou Migalhas metacríticas (7Letras, coleção Megamíni, 2017) e Bye bye Babel (7Letras, 2018).
Bye bye Babel obteve a primeira menção honrosa do Prêmio Cidade de Belo Horizonte, edição de 2016.