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Tradução de A Carnívora (G. A. Morris/Katherine MacLean), por Beatriz Regina Guimarães Barboza

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Fonte: Pinterest


A Carnívora
(G. A. Morris - pseudônimo de Katherine MacLean)

Por que se desculpavam? Não era a intenção deles terem vindo tarde demais à Terra.


Os seres permaneceram em torno de minha cama, com seus trajes à prova de ar feito roupas de ski, e globos envolta de suas cabeças parecendo aquários ao contrário. Era tudo como um desfile de mascarados, com estranhas fantasias e máscaras engraçadas.


Sei que as máscaras são seus rostos, mas discuto com eles e percebo que penso como se estivesse falando com seres humanos por trás das máscaras. São pessoas. Reconheço pessoas e se vou gostar desta ou daquela por algo na forma como se movem e como ficam animadas ao falar; e sei que gosto destas pessoas de um jeito maternal. É preciso se sentir maternal sobre eles, suponho.


Todos me fazem lembrar de Ronny, um estudante de medicina que conheci. Ele era pequeno, corpulento e ansioso. Era inevitável gostar dele, mas não havia como levá-lo muito a sério. Era um pacifista; escrevia poemas e lia-os em voz alta em tempos de angústia; e gaguejava quando falava rápido demais.


Eles são todos assim, receio e docilidade.


Não sou a única sobrevivente — me explicaram isso —, mas a primeira que eles encontraram, e a menos danificada, aquela que eles escolheram para representar-lhes a raça humana. Permanecem ao redor de minha cama e respondem minhas questões, são bons comigo enquanto discuto com eles.


Todos em grupo parecem algo a meio caminho de uma delegação de nações e uma arca, um de cada: grande e pequeno, grosso e fino, quatro braços ou asas, todas as formas e cores em pelagens, peles e penas.


Consigo imaginá-los em sua ONU do Universo, fazendo discursos em suas distintas línguas, ouvindo pacientemente aos diferentes problemas dos outros sem os entender, entediando-se e tendo a educação de não bocejar.


São educados, tão educados, que quase sinto que têm medo de mim, e quero tranquilizá-los.


Mas falo como se estivesse brava. Não consigo evitar, porque se as coisas tivessem sido apenas um pouco diferentes... "Por que não vieram mais cedo? Por que não tentaram impedi-lo antes que tivesse acontecido, ou ao menos tivessem vindo mais cedo, depois...?"


Se tivessem vindo antes até Nevada, onde os trabalhadores do reator nuclear vagarosamente morreram de fome atrás das paredes protetoras de chumbo — se tivessem procurado antes por sobreviventes da poeira com a qual as nações do mundo se massacraram — George Craig estaria vivo. Ele morreu antes que viessem. Ele era meu colega de trabalho e eu o amava.


            Nós havíamos descido juntos, passando por cada uma das portas automáticas de segurança da usina, que supostamente deveriam proteger as pessoas lá fora do perigo radioativo ali dentro — mas o risco de uma falha política era bem mais real que o de um lapso científico num reator nuclear, e isso não foi calculado pelos construtores. Estávamos nas profundezas do subsolo quando a primeira radioatividade no ar lá fora fechou as pesadas portas automáticas de chumbo entre nós e o exterior.


Estávamos a salvo. E morremos de fome lá.


"Por que não vieram mais cedo?" Pergunto-me se eles sabem ou imaginam como me sinto. Minhas perguntas não são perguntas, mas tenho que fazê-las a eles. Ele está morto. Não tenho a intenção de repreendê-los — parecem ter intenções boas e gentis — mas sinto como se, de alguma forma, sabendo porque aconteceu, eu poderia impedi-lo, me permitiria voltar no tempo e fazer tudo ser diferente. Se eu pudesse ter sinalizado a eles, e assim tivessem vindo ao menos um pouco mais cedo.


Eles se entreolham, virando seus rostos engraçados inquietamente, mexendo-se para frente e para trás, mas ninguém responderá.


O mundo está morto... George está morto, aquela magra e patética criatura que ele era, com os ossos à mostra através da pele, quando nos sentamos ao fim com nossas mãos juntas, pensando que haviam pessoas lá fora que haviam se esquecido de nós, esperando que elas lembrassem. Não imaginávamos que o mundo exterior estava morto, coberto de poeira radiante. A política o matou.


Esses seres ao meu redor, eles estiveram observando, vendo o que aconteceria com nosso mundo, escutando às nossas rádios em seus pequenos assentamentos em outros planetas do Sistema Solar. Previram a dor da guerra começando. Representavam civilizações estelares de imenso poder e tecnologia, com populações que teriam feito as nossas parecerem uma pequena aldeia; eram mais fortes que nós, e ainda assim, não haviam feito nada.


"Por que vocês não nos impediram? Poderiam ter nos refreado."


Um acoelhado, que está mais próximo do que os outros, afasta-se e gesticula educadamente que está se retirando para que alguém fale, mas ele parece culpado e não me olhará com seus grandes olhos redondos. Ainda me sinto fraca e atordoada. É difícil pensar, mas sinto como se estivessem escondendo um segredo.


Um cara-de-corça hesita e se aproxima de minha cama. "Nós discutimos sobre... nós votamos...". Fala através de um microfone em seu capacete com um leve cecear, que acredito resultar do formato de sua boca. Tem um focinho e lábios macios e longos, graciosos para mordiscar, como um cervo que come de galhos e brotos.


"Estávamos com medo", acrescenta um que se parece com um urso.


"Para nós, o futuro era terrível demais," diz outro, que parece descender de alguma grande ave, como um pinguim. "Tanto — Suas armas eram tão terríveis."


Agora eles falam todos juntos, tumultuando-se ao redor de minha cama, desculpando-se. "Tantas mortes. Era aflitivo saber. Mas seus povos pareciam não se importar."


"Estávamos com medo."


"E em suas ficções," ceceou o cara-de-corça, "assisti peças em suas máquinas de entretenimento, contando que a descoberta de seres no espaço os salvaria da guerra, não porque vocês nos deixariam oferecer amizade e ensinar a paz, mas porque a raça humana se uniria em ódio contra os forasteiros. Eles esqueceriam seu ódio recíproco apenas por uma nova e terrível guerra contra nós." Sua voz se interrompe num guincho e vira seu rosto, afastando-se de mim.


"Vocês estavam prestes a partir para o espaço. Estávamos imaginando como nos esconder!" Este é um que fala rápido, pequeno como uma criança. Sua aparência lembra a de um descendente de morcego — uma pelagem cinza prateada sobre seu rosto pontudo, amplos olhos de visão noturna, grandes ouvidos sensíveis, com uma protuberância corcunda nas costas de seu traje à prova de ar, o que poderia ser suas asas dobradas. "Estávamos tentando ocultar onde construímos, de forma que humanos não adivinhassem que estávamos perto e nos procurassem."


Têm vergonha de seu medo, pois, devido a ele, haviam quebrado todas as bondosas leis de suas civilizações, reprimindo toda a piedade e mansidão que vejo neles, e deixaram-nos nos destruir.


Começo a me sentir mais desperta e ver mais claramente. E começo a sentir pena deles, pois percebo as razões de seu medo.


São herbívoros. Lembro-me do significado dos formatos. Nos caminhos da evolução, há comedores de grama, aqueles que comem pequenas frutas e os que cavam por raízes. Cada um tem um formato de rosto e pescoço funcionais — e seus olhos, amplos e assustados, para enxergar e fugir de caçadores. Em toda sua história racial, eles nunca mataram para comer. Foram mortos e devorados, ou escaparam, e chegaram à inteligência pela seleção. Sobreviveram os que conseguiram fugir de carnívoros como leões, falcões, e os homens.


Levanto meu olhar, ao que eles desviam seus olhos e cabeças num rápido movimento constrangido, evitando meu olho. O acoelhado é o que está mais perto e me estico para tocá-lo, satisfeita de me sentir forte o suficiente para mover meus braços. Ele me olha e pergunta: "Há carnívoros — comedores de carne — entre vocês?"


Ele hesita, movendo seus lábios como se procurasse ter tato nas palavras. "Nunca encontramos algum que fosse civilizado. Frequentemente os encontramos em cavernas e tendas, lutando uns com os outros. Às vezes, os achamos brigando entre si em meio às ruínas de cidades, mas sempre são selvagens."


O cara-de-urso disse pesadamente, "Talvez carnívoros evoluam mais rapidamente e tendam à inteligência com mais frequência, pois encontramos planetas radioativos sem vida, e lugares como aquele que vocês chamam de seu cinturão de asteroides, onde um planeta deveria estar — mas há apenas fragmentos espalhados de planetas, pedaços que sugerem que foram explodidos. Pensamos que geralmente..." Ele me olhou com incerteza, atrapalhando-se com suas palavras. "Pensamos..."


"A sua é a única raça carnívora que encontramos que era civilizada, que tinha uma ciência e estava prestes a partir para o espaço, " interrompeu suavemente o cara-de-corça. "Estávamos com medo."


Parecem estar se desculpando.


O acoelhado, aparentemente o escolhido como o porta-voz deles com relação a mim, diz, "Daremos a você o que quiser. Qualquer coisa que sejamos capazes de dar-lhe."


Eles falam sério. Nós, os sobreviventes, seremos pessoas privilegiadas, com acesso a todas as cidades, tudo de graça. A sinceridade deles é maravilhosa, mas enigmática. Estariam tentando reparar-se por aquilo que sentem que foi um crime? Isto é, que tenham permitido que a humanidade se matasse, perdendo a riqueza de uma raça à Galáxia. É por isso que são tão generosos?


Talvez eles ajudem a raça a recomeçar então. Os registros não estão perdidos. Os poucos sobreviventes podem repovoar a Terra afinal. Sob a tutela dessas raças pacíficas, sem a tensão da divisão em nações, floresceremos como uma raça. Nenhum descendente meu, até a geração mais distante, participará de guerras novamente. Essa lição nós aprendemos de vez.


Esses tímidos seres não percebem o quanto a humanidade quis paz. Não sabem com que relutância fomos forçados e presos às armadilhas das velhas instituições e dos deformados emaranhados da política, frente ao que não encontramos solução. Não éramos naturalmente selvagens. Não éramos selvagens quando abordados enquanto indivíduos. Talvez saibam disso, mas estão com medo de qualquer forma, um medo instintivo levantando-se do sangue de seus antepassados, caçados e temerosos.


A raça humana será uma boa companheira para essas raças. Mesmo me recuperando da fome como estou, sinto em mim uma energia que eles não possuem. O selvagem em mim e em minha raça é uma coisa criativa, pois, para aqueles que foram educados como eu, ela é uma selvageria controlada que ataca e destrói somente problemas e obstáculos, nunca pessoas. Qualquer humano criado fora das tradições políticas, que a raça herdou de sua infância marcada de sangue, seria tão amigável e disposto à amizade quanto eu com relação a esses seres. Jamais poderia machucar esses coelhos e esquilos descomunais, tão agradáveis.


"Faremos todo o possível para compensar... tentaremos ajudar," diz o coelho, tropeçando em meu idioma, mas civilizado, cordial e gentil.


Sento-me de repente, esticando-me impulsivamente para apertar sua mão. De súbito assustado, ele pula para trás. Todos recuam um passo, dando olhadelas por trás de si como se quisessem ter certeza de uma rota de fuga. Seus grandes e luminosos olhos se arregalam, passando-os furtivamente por mim até a porta, assustados.


Devem pensar que estou prestes a saltar da cama para golpeá-los e comê-los. E, quando estou quase a rir e acalmá-los, prestes a dizer que tudo que quero deles é amizade, sinto uma pontada em meu abdômen nesse movimento repentino. Toco-o com minha mão que está sob as mantas.


Há a cicatriz de uma incisão ali, bem fechada. Uma operação. A fraqueza da qual estou me recuperando é mais do que a debilidade da fome.


Por apenas meio segundo não entendo nada; então percebo porque pareciam envergonhados.


Eles votaram pelo assassinato de uma raça.


Todos os humanos sobreviventes encontrados foram tornados estéreis. Não haverá mais humanos depois que morrermos.


Estou congelada, uma mão ainda esticada para agarrar a do acoelhado, meus olhos ainda analisando sua expressão, mitigando palavras ainda meio formadas.


Haverá tempo para rancor e luto mais tarde, mas agora, neste instante, consigo compreender. Provavelmente estão bem certos.


Éramos carnívoros.


Eu sei, pois, neste momento de ódio, poderia matá-los todos.




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Beatriz Regina Guimarães Barboza é mestranda em Estudos da Tradução na UFSC, traduzindo Anne Sexton. Graduou-se em Estudos Literários na UNICAMP com a tradução de um livreto de Djuna Barnes. Faz parte do Grupo de Estudos Feministas na Literatura e na Tradução (GEFLiT) na UFSC. Escreve, traduz e revisa.

E-mail de contato: beatriz.r.guimaraes@gmail.com

Blog: https://beatrizrgb1994.wordpress.com/


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