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O passeio do esquizo, poema de Jorge Lucio de Campos

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Boy with machine (1955), Richard Lindner.




[a Gilles Deleuze e Félix Guattari]



1


supondo que o diga deste modo
terei êxito? – expressão que gosto
silêncio de jocoso peixe

2

por acaso também sou
o que as coisas mudam
na adega escura

3

que língua susta minha antítese?
quão vil é a cena em que me perco?

4

fazer sorrir um
copo de leite?

5

digamos que não gosto de não ter
nada à prova de tudo −
uma vida meio surda
mas quem sabe em face triste
à beira de gargantas insistentes de riscar
balizas na gaveta em que
repasso o dia

6

um verme roeu meu rabo
no túnel do tempo
seu ferro batido espanou o pó inchado
da terra torta do gozo da morte –
assim eu soube: rasgava o lábio picante
a boca pesada perplexa com um buraco no meio pra escrever
eis um convite de espirrar bacante a carne
que acolhe o fogo antes de saltar

7

a combustão do dia nos joga na cama e deixa eriçados
livros ácidos de luz nos depravam suntuosos e um
pouco de horror provém febril à porta do cu
e uma fábula geme até que os braços caiam e
arrotem flores nas grades das regras
da infância de verbos trocados

8

que mal há se não se fala no peito que ressoa
pagão aquele que entoa a vista curta em
que a angústia habita e move um mundo em que
fervilham abismos gagos na avidez de ovos crus
paridos em paredes gélidas libações de garfos senis –
desertos em que afundo e adoeço

9

admito que não acabe
não arredarei do que se dá na alba
do amargor só-de-álcool-e-província de um vento em busca de amor próprio

10

não sei se não sei qual pureza posso adivinhar
não sei do que no duro destino humano há de ser
à voz do alto estilhaçado campo que sacia o sol
há de nascer um crepitar de lumes

11

não deixo de ser fora de meu eu enrijecido
oscilo entre o fazer da água se preciso
respiro transito desperto na hora exata distorcida
no fôlego de um narval de escamas quentes e tripas de titânio

12

acolchoado oxímoro ante um resguardo que se oculta e eviscera
cripta exposta no baixo ventre da coxa linear
que cruza à sombra do colhão de ferro

13

supondo que o diga deste modo
ter êxito um dia uma expressão que gosto o real penetrável de uma fé jocosa
não por acaso também somos
quando o tempo muda e se bifurca
e além da adega faz sorrir

14

e o que nos separa sem querer respira o resto
ele mesmo só de cornos cascos cócegas marés fluxos
do lado de lá parecem claros com razão

15

onde fui capaz de virar alteridade?
onde fui Jano sem outro nem fora?
onde me agastei quase cego de olhar?
onde fui além de meu faz-de-conta?
onde consumi meu rim por mais um dia?
onde engajei-me só para tê-lo a meu lado?
onde me fiz claro por não sei o que?
onde tanto quanto veio o inesperado?
onde afundei-me no tapete perolado dolorido de mim?
onde na ausência do desenho da memória que não vejo?
onde na medida em que conservo o sem sentido?
onde vou além de mim destruído?

16

onde, porra?

In: A grande noite perdida (Bookess, 2018).








____________________
Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017), O triunfo dos dias (2018) e A grande noite perdida (2018).


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