Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Um poema inédito de Chiu Yi Chih

$
0
0


rastejar além, interrogar-se diante, mudar para, olhar sobre, cantar além, evadir-se para onde?...onde? onde relembrar? em quais circunstâncias e com quantas?...rastejar diante, olhar como, cantar para, mudar diante, sempre além, sempre naquilo que desaparece e reaparece, sempre um pouco aquém,

sem ser idêntico a nada, sem gosto, cheiro ou reflexo que resguarde o lugar para assim circunscrever os arredores do vazio quando somente há o inexistente ou o incerto presente do inacabado, quando somente as rosas flamejam ao redor da areia gélida, como se alguém tivesse caminhado sobre...sobre..sobre as lembranças que porventura ainda nos espreitam do fundo de algum abismo...

mas ainda sem nenhum desespero de chegar a....de rastejar para...de evadir-se diante...de mudar como quando se sabe que é impossível estender-se para além...então...então...com desejo de circunscrever o inútil...com uma certa lentidão de olhar...relembrando-se de algo que transcorre ainda...ainda...ainda...mas até quando? quando?

e se aquilo que é relembrado não passasse de um crânio tosco ou de um corpo suavemente suspendido? e se nessa interminável interrupção petrificadora nada mais houvesse para....para....para existir e resistir? seria tal o desejo de caminhar que se estenderia no vazio?...onde se resguadaria esse algo que ainda não é e que já transcorreu? ou por onde rastejar se é que agora o conhecer do não-conhecer é sublime...se é que agora o não-conhecer e imaginar que se conhece é ignóbil...

pois se cada letra ressoa entre o sim e o não...entre a presença e a relembrança...entre o aqui e o adiante...entre o onde e o além...entre aquilo que se sabe existente e o outro que se estende sobre...pois até onde se poderia olhar se é que a sombra se desvanece numa avalanche de súbitas evanescências? se a própria mão que avança desliza noutros gestos mal esboçados? se o próprio corpo parece se esquivar atrás de suas reminiscências?

talvez melhor seria recomeçar a olhar...recomeçar a descrever o movimento de seu próprio gesto em mínimos detalhes...olhando-se no fundo de si...ou mesmo caminhando sem avançar...caminhando diante de cada presença minúscula...caminhando diante de cada desejo irredutível...transcorrendo...transcorrendo...transcorrendo no fundo de si...à espreita de...para existir e resistir...rastejando em cada vestígio...desmoronando se preciso for...se necessário for...à espreita de...à espreita de...mesmo que se arrastando lentamente...ou imaginando que tal nevoeiro de delícias perniciosas...tal resplendor falso de fugas obscenas pudesse ser preenchido com os pormenores de quem resiste à certas definições e classificações...

se é que ainda existe o essencial, o essencial que está além das limitações...sim...o essencial...o essencial que se revela em alguns instantes únicos e inigualáveis...como o rastejar de um lagarto no deserto...maravilhoso clarão de esplendores...possível e surpreendentemente terrível. ainda sem sequer um vestígio de presença...inefável...inefável enlevo para quem se lança ao interminável...

e retraindo...e estendendo...e condensando o esboço de um abraço...sorrindo...sorrindo em lágrimas de membranosa superfície...como se estivesse chorando quase...quase...quase ardendo por dentro de sua ossatura...quase expelindo a noite de lânguidas excrescências...quase aspirando as lívidas lascívias de uma orgia misteriosa...sorrindo até os extremos...

e comprimindo...e dilatando...e exsudando nessas convulsões intensas...como se sua boca estivesse mastigando fibras imensas...como se sua garganta estivesse engolindo lâminas suspensas...como se o vento aplainasse-lhe o pescoço...como se uma tempestade inundasse-lhe os ossos...como se inúmeras rajadas e relâmpagos riscassem-lhe os olhos...quando então ele continua sorrindo...inofensivo-inócuo...confuso-complacente...

incapaz de...incapaz de...incapaz de...no entanto inefável-interminável enlevo de quem se estende-distende...chorando até às ossaturas...retraindo a superfície da noite...alargando o esboço da presença...excretando e lacrimejando a ponto de se apagar...como se tudo que lhe acontecera em raros instantes pudesse ressurgir com um vigor nunca sentido...nunca?...nunca?

e nada que pudesse ressurgir nesse exato momento seria ainda suficiente..nada...nada..., pois faltavam-lhe as forças, pois outras matérias emanariam de suas vértebras ou talvez elas mesmas renasceriam em profusão? é quase um vendaval que devora suas vértebras...é quase um torvelinho nunca antes visto o que se vai presenciando...assim repentinamente do vazio à existência...como terremoto que atordoa-lhe os pensamentos...como vertigem que atravessa-lhe os nervos e estreita-lhe as virilhas, repercutindo em todos os poros, perfurando as hesitações íntimas, destroçando as aflições ínfimas, atingindo o ápice de uma densa erosão...como se então ele começasse a perder algo...algo...algo plenamente concreto que o espreitava do seu lado esquerdo...e que ao mesmo tempo o observava do seu lado direito...esse algo inconsciente do qual mal sabia...embora sempre tenha existido e resistido ao seu lado...

e nada que pudesse ressurgir seria ainda pleno...nada...nada..., uma vez que todos lhe diziam que ele era inútil...inútil...inútil...como sempre assim lhe parecia quando se olhava no espelho...pois mal se apercebia do lado esquerdo de seu rosto...mal contemplava também o lado direito de sua face vazia...pois só agora ele percebia que estava plenamente lúcido ao contemplar o seu próprio rosto desconhecido...havia...havia uma espécie de iluminação de si consigo mesmo...uma aura de lucidez, de suspensão, um recuo de si consigo...luz e escuridão se mesclando um ao outro, despojo e desencanto se dissolvendo, sublimidade e fadiga se diluindo em cada momento de sua contemplação

“inútil...inútil...” – murmuravam entre si essas outras vozes diante de sua presença vazia, que contudo se distanciava cada vez mais da superfluidade e da mundanidade...ele que parecia caminhar em direção a...em direção a algo cuja espessura concreta ainda mal se pressentia...mas ele avançava sem avançar...como lagarto no seu deserto...ainda que “inútil”, sem saber se chegará a...

rastejar além, interrogar-se diante, mudar para, olhar sobre, cantar além, evadir-se para onde?...onde? onde relembrar? em quais circunstâncias e com quantas?...rastejar diante, olhar como, cantar para, mudar diante, sempre além, sempre naquilo que desaparece e reaparece...

para onde avançaria?...recuaria diante do túmulo das presenças e abstrações? avançaria acima do cemitério de ficções?...para onde regressaria? para aqueles que lhe diziam “inútil”...porquanto várias vezes lhe ocorrera submergir na sua própria espessura sólida...ou talvez seria melhor precipitar-se no abismo inaudito? contudo, ao invés de sentir-se sólido, percebia-se desgarrado, esgarçado... como bloco de gelo derretendo-se ou pássaro recolhendo-se ao crepúsculo...inefável silêncio...interminável esmorecer...

quase recordando novamente....quase resplandecendo...quase reverberando...mas ainda sem nenhuma intenção de evadir-se para....de relembrar quando...de estender-se diante...assim tão esvaziado de si, tão simplório que seria impossível espraiar-se por onde...ainda...ainda...com a pulsação de retornar ao vazio...com uma certa lentidão de rastejar...transcorrendo-se de quando em quando...como um atônito inseto que rumina nas montanhas de uma luz inaudita imergindo nas eflorescências ou escavando as ruínas de um envoltório mefilítico ou tamborilando com o frenesi das violetas ou cruzando as alvíssimas pletoras da insônia ou se estirando sobre os pináculos do éter em chamas ou avançando cada vez mais sob a vastíssima-sombra-do-inócuo ou ainda pescando as larvas escaldantes que respingam dentro do vaporoso-denso-diluído do todo indiviso submergindo noutras tempestades que agora se dissipam nas margens de um córrego ou numa torrente de vozes que pouco a pouco se arremessam em direção a um precipício de olhos-estalactites como se nada mais houvesse daquela antiga vida como se todas as curvaturas se suspendessem nas levíssimas bacias do ímã incandescente como se estivesse sendo acossado pelas cavidades que soçobram em cada ponto da gélida abóbada ou como se nesse intervalo de compressões todo sol se emudecesse pela primeira vez como se fosse apenas um mero ruído para a próxima eclosão


....................................................................................

abrasado pelas tremulações dos sóis
sem saber quantas noites já haviam se passado;
aturdido pela inconstância de séculos ou eternidades,
quando apenas em surdina
um leve torpor suspendia-lhe os ossos,
quando repentina e destemidamente
ele retrocedia e avançava,
envolvido pelas róseas nuvens saturninas;
quando todas as mímicas soturnas
e dissonantes se dissolviam em seu peito,
faísca por faísca; ah, sim, havia miríades de faíscas
que se estendiam novamente diante da sua lenta respiração –
já que era provável o início de uma longa
e vigorosa implosão, tão longa e vigorosa
como nunca a havia experimentado antes:
apesar de toda prudência e parcimônia,
o que se via era um difuso estiramento de si,
ensurdecedor, irreparável,
extirpando suas pálpebras,
expelindo seus pensamentos,
como se entre o seu centro e as esferas dos anéis dissolvidos,
de ponta a ponta se houvesse dilatado
uma tessitura densa, impenetrável,
porém impregnada de suores e odores
que mal podiam ceder espaço
àquela aniquilação
tão suavemente ofuscante,
tão impregnada de um enxame de baforadas,
de um exército de sons que por ora não se diluíam,
apesar da aparição de algumas gotículas –
uma vez que nesse infuso e corrosivo atordoamento
nada lhe impedia de escorar-se no âmago de si,
uma vez que ao mesmo tempo
imóvel, disperso em virtude de uma transpiração dissimulada
que mais parecia impossível de ser descrita
na sua pérfida e túrgida inefabilidade,
tudo parecia se inebriar com o sangue do inferno,
onde debaixo do leito dessas águas insanas
cresciam diversas asas, tal como das aves de rapina,
tão veludosas como estas que jamais se viram semelhantes,
as quais compondo-se com outras plumas e mandíbulas
numa volumosa e confusa voluptuosidade
ora se comprimiam ora se distendiam,
nem havendo tampouco repouso
nesse insone, noturno e inclemente
respingar de cristais suspendidos um contra o outro;
sem outra alternativa a não ser
encerrando-se no fundo dos infinitos mundos possíveis
e emergindo cada vez mais num desconcerto
sincopado a atravessar intervalos e interstícios  – 
embora ainda se ignorasse o motivo desse retorno de si,
sabendo-se que cada volta em torno do círculo
suscitava algo de irremediável,
e, contudo, ressentia-se que nada mais permaneceria,
pois que cada astro se refletia e se retorcia
como uma serpente de anéis de aço
pouco a pouco se enrodilhando em sua própria cauda
numa absoluta e insípida desaparição:
pois que, longe de se desprender das órbitas e dos vértices,
era mais provável que um perigo iminente
destroçasse todos os seus órgãos e esse outro inimigo
pudesse avolumar-se indistintamente no seu corpo,
e essa outra desmesura pudesse incendiar-lhe o sono,
contrair-lhe as gengivas, constranger-lhe os nervos,
já que agora tudo se limitava ao fluxo das retrações e expansões,
sem que nenhuma parte viesse por si desfigurada –
e, contudo, era como se o fígado, os rins,
as glândulas, as têmporas, os pulmões
e o coração fossem sendo repelidos para fora dos eixos:
como se num rabisco de contrastes e sombras
cada parte escorresse para além do seu contorno,
uma vez que era preciso mover-se e evadir-se ao limite, 
após o deslizar de cada instante, após a incansável trepidação
como se nunca houvesse pausa de um ponto a outro
para se vislumbrar o porvir da consumação,
e ainda fossem quase invisíveis
os corpúsculos na sua lívida transparência,
intrépidas manchas em proliferação
forçadas a transmigrar na marcha da destemperança,
pois que nem ele mesmo ainda estivera consciente
dessa Coisa que à primeira vista se alongava
numa espécie de intumescência silenciosa e displicente
onde seu cérebro parecia se petrificar
no meio dos insignes túmulos do faraó
ou quase a ponto de se afogar
num pântano abissal de raízes e plantas aveludadas,
sem que fosse deixado um rastro após:
pois, somente assim, somente assim
crescia a sua ruminação às avessas,
a sua despovoação entre os astros insubordinados;
somente assim sua língua se erguia e se distendia
sob o peso daquela vastidão inumana:
pois, somente assim aquilo que nele era mais profundo,
titânico e aterrador se extravasava
por meio dos fragmentos dos presságios, 
como mastros singrando até às turbulências dos pensamentos,
pois, somente aquilo que nele era mais avassalador
se estirava com estrondos, estupores e tormentos,
pois, somente assim segundo após segundo,
aquilo que nele era mais insurgente
começava a transpor os atalhos e os retalhos do insondável,
onde até mesmo na escuridão,
essa finitude selvagem
essa contingência
essa mão crivada de cinzas
mal se deixavam vislumbrar,
pois, somente aquilo que nele era mais caústico
nascia e renascia num imenso,
indistinto e irremediável transbordamento de si.



Chiu Yi Chih (邱奕智) é professor de filosofia chinesa no Centro Cultural de Taipei onde ensina as obras clássicas de Laozi, Zhuangzi, Liezi e I Ching. É professor de mandarim, tradutor, poeta e filósofo criador da "Metacorporeidade"(气质变化 - qizhibianhua). Ele nasceu na cidade de Taipei (Taiwan) e se naturalizou brasileiro. Fez mestrado em Filosofia Antiga (USP) e graduou-se em Língua e Literatura Grega Clássica (USP). Publicou “Naufrágios” (Multifoco-2011), “Metacorporeidade” (Córrego-2016) e a tradução do clássico do Taoísmo, "Dao De Jing" de Laozi (Mantra-2017). Visite www.filosofiataoista.blogspot.com.br


Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548