imagem: Danielle Magalhães
quando o céu cair
em berlim eu passava
grande parte do tempo olhando o céu
muito azul bem no final do inverno
fazia muito frio e eu achava engraçado
porque parecia que o céu contradizia
a temperatura
como pode tudo ficar tão
bonito com uma temperatura tão baixa
em berlim eu fiquei no lado oriental
mas um dia fui ao lado
ocidental em uma rua
onde havia muitas mulheres sírias
pedindo alguma coisa para qualquer um
que passava
eu sentei em um banco de uma praça
e uma das mulheres percebeu talvez
ela não é alemã e veio
falar comigo em inglês
perguntando se eu sabia falar
inglês? eu disse mais ou menos
o que na verdade
foi resposta nenhuma
então ela pegou um papelzinho e começou a ler
a mesma pergunta
em várias línguas línguas
que eu nem sabia
que existiam
sempre a mesma
pergunta e eu fiquei sem reação não consegui
parar de olhar para
o papelzinho com a mesma pergunta até
em português ela lia
uma por
uma atrás da outra
sem interrupção até
que ela terminou de ler ela
levantou os olhos para a minha cara e antes de
se virar e procurar outro
qualquer alguém ela
me olhou por um segundo e meio
frustrada meio irritada
como quem não aguenta mais
repetir sempre a mesma coisa
em línguas diferentes para
todo mundo the whole world
que parece falar língua nenhuma
sem entender palavra
de nenhuma língua sequer
da sua que parece nunca ter sido
sua
ela
fala para ninguém
ela fala
para ninguém
como eu sem expressão como alguém
que não estava entendendo
como se eu não falasse
mas é ela que fala
todas as línguas
vêm dela todas
as línguas são todas
elas concentradas em uma pergunta
que se repete
em ouvidos outros
em rostos sem
rostos
sempre sem resposta
o céu muito azul
estava no rio
anteontem antes de
ontem e antes e antes
no mesmo momento na mesma hora
os imigrantes estão morrendo
entre a ásia e a europa
os imigrantes entre
a áfrica e a europa imigrantes
entre a américa e
a américa o mundo
parece que fica todo tão
bonito e a vida parece
que faz tanto sentido
quando o céu muito azul do início
da primavera
cai sobre o rio
um dia antes da foto do menino sírio
morto se espalhar pelo mundo
que desde um dia antes
e antes
parece que foi sempre ontem e nunca
hoje
e sempre esse céu
sobre berlim ou aqui aqui
ou lá
paira na atmosfera do universo
contradizendo a temperatura
do mundo
e deixando sempre a mesma pergunta
sem resposta
em todas as línguas
há um abismo entre o que eu queria falar e
o meu modo de quebrar o silêncio
há uma ânsia de desistir
de falar desisto de procurar sua voz onde
está seu pensamento quando você está
a menos de um palmo de distância um abismo
minha voz e o que treme aqui quantas quebras
há em suas mãos quantas línguas partidas quantas terras
arrasadas eu vou catando as sobras
dos seus desastres por aí por quanto tempo a vida
eu me pergunto por quanto tempo a vida é viver tentando
em busca à espera quem foi que te fez assim por que
eu sinto todos os seus anticorpos todos que eu nunca tive
a resistência dos seus membros a postos
se virando sozinhos pela cidade enquanto
todas as suas vísceras foram deixadas em casa
onde você esqueceu de falar
não há nenhuma voz que te lança
no mundo você não está em nenhum lugar por onde você pisa
você continua em casa nenhuma voz te lança
no mundo você com seu mapa sempre sabe
por onde ir suas pernas nunca estão perdidas
sempre sabem como voltar não há resto nenhum
seu pelo mundo há todas as minhas partes entre
o que eu queria falar e o meu modo de quebrar
há um abismo em que caí tentando
procurar suas partes e não acho
acho que desisto morrerei
em casa escutando o silêncio
não vou fazendo a hora nem esperando acontecer
contrariando a canção vou repetindo
a hora não existe mais
hoje
todos matamos hora porque não aguentamos a repetição
hoje todos matamos a hora
porque tampouco sabemos da espera
acontece que um poema se faz
com as mãos como um protesto
se faz protestando um poema se faz
fazendo o tempo fora da hora encontramos
ainda a repetição até que
da repetição não aconteça
mais a espera até que
aconteça uma vida qualquer ainda que
aconteça de uma força violenta
como um tiro
nada cai do céu como o facebook pode ser o lugar
onde muitos poemas nascem ainda
esperamos muito
pelo poeta
para nascer ainda esperamos para viver
esperamos ainda para morrer
como numa guerra
espera-se por cartas
espera-se por bombas que deem fim
à espera na vida espera-se
por Deus a espera é infinita
e a dor é maior e mais real
porque finita
quando dizem que a espera é feminina
desde o início
o homem conquista
e a mulher espera
o voto conquistado há pouquíssimo tempo na história
a unidade mínima de tempo é
século
hoje todos são penélope
mas os homens ainda
os homens ainda
o homem encontra o feminino na espera
como numa guerra o homem encontra
o feminino você troca de lugar comigo
a partir do século XX
mas quem demorou a votar fomos nós
nunca antes na história se falou tanto em repetição
na poesia hoje a poeta fala da técnica
do cinema no fazer do poema
a repetição e o corte aqui
nós atados na linguagem
tentando fazer um poema ainda
depois de tanto tempo esperamos
o Bertolucci ser preso ainda
mas isso não vai acontecer
como não se ressuscita um morto
para responder pela vida
violentada em vida enquanto encenava
o espetáculo mais consagrado dos últimos tempos
toda uma vida estragada
pela arte uma mulher estuprada para sempre
a cada vez que alguém assiste
em cada tela a mesma cena
na vida real morremos
de repetição
eu me sinto mais morta agora
e eu só me sinto menos morta agora
porque em um longo tempo de espera
em que não consegui escrever nenhum poema
fiquei escrevendo repetidamente até que um poema aconteça
vou tentando escrever um poema
já que não posso matar uma pessoa
vou tentando escrever um poema
para ser salva pelo tiro que não posso disparar até que
saiu esse poema
histericamente
sinto dor por todos os lados
o corpo todo cortado
historicamente boiando nas ondas do mar
da eterna repetição da espera
a violência de um tiro não disparado
na vida real no corpo a repetição
do tiro disparado no final
do filme a morte do homem
pai e amante a tragédia
às vezes não realiza a vida
continua trágica até que
o tiro não disparado
atinge repetidamente nossos corpos
como o meu se debatendo convulsivamente
agora enquanto escrevo este poema
em movimentos repetidos só para enganar a ilusão
de que um dia não haverá mais a espera
Danielle Magalhães e a Editora 7Letras convidam para o lançamento do livro de poemas Quando o céu cair
:: 29 de maio, 18h ::
Galeria Vitrine de Ipanema, Rua Visconde de Pirajá, 580 sl 320.