OH RELÍQUIAS DA
SANTA LOUCURA teu êxtase
santa teresa
é um só corpo
o do mártir
por onde o oculto
onde o demônio se encantou
na forma de mulher
freira
mendigo
menino negro
gigante
mouro
vômito de sangue
dragão
gato preto
maçã
onde o sinal da cruz salvou
e zaide
iluminada por um anjo
andou sobre a água
e fez um dragão adormecer
oh relíquias de
são crisóstomo
transporta esse cristo
carrega o mundo em teus ombros
como fizera o
gigante atlas pois
o diabo disfarçado
envia flechas envenenadas
e santo antônio encontra
na floresta
paganíssimos centauros
e adormecido
um sátiro
escuta senhor a dor na cantiga
escuta santa maria da
purificação de freixiosa
quando iluminou aos pastorinhos
numa ponte de prata
por onde passaram as velhas
por onde
verônica entre as pedras
avistou uma casa
um retábulo
santa casa de mouros
com portas a céu aberto e o inferno
nunca
há-de os ver por perto
oh relíquias da nossa santa loucura
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“Aspiro ao grande labirinto”
A cidade começa por uma linha
geométrica, uma linha espinha cervical
linha quase, sem rigor
A cidade irisa o pelo na aurora
e logo joga seus ratos à via principal
Eles, irrequietos roem as elipses dos bueiros
riem à porta dos palácios – em coro ressoam
– riem a roupa do rei
oco do nada rumam
e agora
são ratos de pedra
cujo alimento rotundo são suas sílabas sem Pai.
Ao sol
as estátuas estão cobertas com um manto negro
As palavras
mergulhadas em um rosa rio escuro
rio em brasa, rio em toras
em poucas vogais levando
a palavra-tripa
a palavra-cega
palavra-demo
palavra-mundo
A travessia é viva
Salubre o animal
o narco-bicho em seu torpor abre as asas
golpeia o ar esparge a água escura
quem dera o furor yanomami
mas nunca mais o belo
nunca mais a voz
nunca.
Por isso ergueram a capela ao grande vento
Plantaram a grande árvore
Beberam da grande sede
Santuário – um rosário rio aqui
no claro do papel se ergueu
e da linha-risco uma outra cidade vingou
talhou, desbastou, capinou
cortou o vazio enfurecido
para que se ouvisse o verbo ave
o nome enxame
Águas de Espanha brincam agora o rio
Santas semeiam o jardim
redondo em sua doçura de perfumes frutas flores
– cidade corpo aqui
posta a fio e fogo
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Jussara Salazar é escritora e artista visual. Publicou Inscritos da casa de Alice [1999],Baobá, poemas de Leticia Volpi, [2002], Natália [2004], Coraurissonoros[Buenos Aires, 2008], Carpideiras[2011] com a Bolsa Funarte, ficando entre os finalistas do Prêmio Portugal Telecom na edição de 2012, e O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas [2014] e Fia[2016]. Tem sua obra publicada em diversas revistas e traduzida para o inglês, o espanhol e o alemão. É Mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/São Paulo.