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desépico, distópico, disfórico - a mímesis do possível nos poemas de Anderson Pires da Silva

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http://galeri.mynet.com (arte: yil sonra)





I

New York, uma saída perigosa
a surpresa de uma tarde de domingo
algumas cervejas, muito drama.
Quando será gentil comigo
quando revelará os disfarces.
O vestido no chão é um buraco negro
de Nova Iorque à beira do precipício
caem todos os casais clandestinos
refugiados, residentes de um lugar provisório
a perseguir o futuro, o cão a morder o próprio rabo.
Como falar o seu idioma
como não trair sua rígida sintaxe
habitar sua língua, estranhar seu corpo 
à espera de um dia que ainda está para acontecer
por quê?
As notícias do mundo não são boas.
New York é um lugar para nos esquecermos
e tudo o que ficará é poema, se tivermos sorte.










II

O guarda o levou ao portão de saída
o presídio.
O sol brilhava, outono
meio-dia, os olhos ardiam
como os de um recém-nascido
sujo de placenta saído do ventre
desconhece o mundo à sua espera
mas o prisioneiro sabe o que perdeu
e o que quer de volta.

Liberto, tem uma marca
gravada a ferro e fogo, no peitoral
(a minha é a letra A)
o sinal do delito.

De volta à sociedade, o desajuste
deverá buscar um trampo, um lugar
o último na fila dos desempregados.

Ah, ainda não disse qual foi o erro
o que perdeu, e o que quer de volta.

Preso por drogas e uma vida loka
perdeu, o convívio com os filhos
quer de volta.

Era um homem contando os dias na parede fria.

Do lado de fora, ninguém o espera
não foi como nos filmes, nunca é.
Ele tem algumas moedas no bolso, sua mãe deixou
mas a vergonha a impediu de estar lá
a liberdade é uma rua solitária
poeira nas narinas
duas horas à espera do ônibus.

Desce da lotação em frente à casa da mãe
ela deixou só o dinheiro da passagem
nenhum centavo além.
O mendigo na calçada tem mais nas mãos
mas ele não quer, na primeira noite em liberdade, dormir na rua
(a mãe fechou as cortinas, rápida, para os vizinhos não o verem).




Após trancar a porta, ela o abraçou e o beijou
e lhe disse o que diz toda mulher.
Havia um jantar no forno.
O quarto para dormir, lençóis limpos
cheiro de infância
mas a criança não existia mais
dentro dele
vazio e revolta é o que há
e o que não pode ser.

Acordou, pão quente sobre a mesa, queijo prato
e o ofício judicial informando o valor da pensão
onde e como e em qual hora deveria ver os filhos.

A mãe
se virou para manter o lar que ele nunca fixou os pés
três crianças e um pai ausente
ela se esforçou para entender
crer em suas mentiras, até que um dia
toda casa cai
sobre a cabeça de uma mulher.

Ele pegou o dinheiro da passagem
ida e volta, nada mais
para encontrar a mãe dos seus filhos.

Seus dedos hesitam sobre os números do interfone
o novo apartamento dela, até tocar
a queria embaixo com as crianças, o encontrassem
na rua, o seu habitat
mas ela quis que subisse, 6º andar
e visse como vivia, e seus filhos
os três no Playstation.

Era uma mulher vencendo seus dias além da parede fria. 

Os filhos o esperavam, cautelosos
(pedira a mãe para não levá-los para vê-lo na prisão)
a mais nova correu ao seu abraço, os outros dois não levantaram do sofá.

A mulher falou:
- Você fica com as crianças hoje à noite, têm muito para conversar, eu vou sair, deixei uma cama arrumada, no quarto de empregada.


Ele queria se jogar aos seus pés
implorar perdão
que ilusão, não tinha mais direito
não tinha nada, além dos filhos lhe perguntando sobre a prisão
(se tinham comido o seu cu como o avô lhes dissera).

As crianças apagaram
duas da manhã.
Ele não sente sono, há anos dormir é luxo.
Olhando as estrelas, compreendeu como a vida é gozada
quais ciladas preparamos para nós mesmos.

Ele não fumou até o sol nascer, claro
esperou ela voltar, com seu novo namorado
às 07h, o cabelo molhado saindo do Heartbreak hotel.
Ela perguntou se as crianças dormiram bem, se escovaram os dentes.
O namorado mijava com a porta aberta do banheiro
o som do seu assobio era uma provocação
se fosse antes, enfiaria a cabeça dele na privada e, agora não
fingir ser socializável
amigo, por enquanto.

Na despedida, ele diz:
- Eu volto na próxima sexta à noite, para ficar com as crianças. 










III

Não provoque o abismo
antes, distraía os monstros
se existir, no seu íntimo
adote a noite estrelada
o dia nublado
o sim e o não, talvez
tudo está para acontecer
já é, já foi
enquanto dorme
acorda, escova os dentes
vai para o trabalho
ou fica no sofá
uma coisa é certa, ou não
irá bater contra o muro, só
porque estava de óculos escuros.










IV

With a little help from Laura Assis

Cadeira
último refúgio
para um corpo cansado
deveria levantar e abrir a porta
se esconder através de um sorriso ou
ser precisa flecha rumo ao alvo de um supremo dilema
serpentes caluniosas rodeiam sua casa
deveria ser um antídoto
sair nua na rua
invisível.










V

Alguns poemas não têm sentido
descobertas, surpresas
ou espanto.
Não indagam o caos
tão separados da realidade
nem arranham a superfície, das palavras
não tiram nada
nenhum compromisso com o sublime
a vida, ou transcendência.
Alguns poemas simplesmente nascem
e morrem sem se importar com o esquecimento.










VI

Langue contre parole 
OU how to fuck Mallarmé










______________________
Anderson Pires da Silva nasceu em 28 de julho de 1972, Angra dos Reis, poeta, autor de Selvagens (Edições Macondo, 2016), Trovadores elétricos (Aquela Editora/Funalfa, 2013), Mário & Oswald – uma história privada do modernismo (7Letras/Faperj, 2009), Los Paranoias (Fanzine Urgh!, 2000). Co-autor de Livro de sete faces(Nankin/Funalfa, 2006). Co-diretor dos vídeos-poemas “Trovadores elétricos” Co-fundador do Eco Performances Poéticas. Professor de literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Contato andersonpires31@gmail.com


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