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Projeto de Frank Ghery em weburbanist.com/ |
Sete cicatrizes
A primeira cicatriz ela adquiriu quando caiu de patins aos seis anos. Ela aindase lembra da dor e da sombra de seu pai gigante pegando-a no colo e dizendo palavras ternas. É uma cicatriz mediana, que corta o joelho de fora a fora e tem o formato de uma meia lua.
A segunda cicatriz ela adquiriu numa cirurgia de apêndice. Ela comia bolo de milho com sua mãe quando foi atacada por uma dor lancinante. Vomitou parte do bolo e gritou como uma pessoa fraca. Voltou para casa alguns dias depois e virou, por alguns dias, a menina mais popular da escola.
A terceira cicatriz ela adquiriu no acidente de carro. Seu queixo foi quase partido ao meio e sua cabeça nunca mais parou de latejar, obrigando-a a tomar analgésicos periodicamente. O acidente lhe tirou o pai salvador e fez brotar a vida como ela é de verdade.
A quarta cicatriz veio quando ela, inadvertidamente, tentou segurar um copo que despencara de suas mãos trêmulas. O baque fez o copo partir em pedaços e uma ponta penetrou em sua pele macia. Ela chorou menos pela dor do que pelo desenrolar daquele ano e das memórias recentes.
A quinta cicatriz ela adquiriu quando tentava se desvencilhar das mãos agressivas de seu marido. Ela não levou uma surra, como pode parecer, mas ele a chacoalhou com violência quando discutiram. Ela bateu com o cotovelo numa mesa, o que produziu uma cicatriz parecida com a do joelho.
A sexta cicatriz ela adquiriu quando cortava displicentemente alguns legumes sobre a pia. Pensava em saídas e esperanças esmaecidas. Pensava também em como a vida é um trem desgovernado que parece não ter estação fixa para parar.
A sétima cicatriz ainda está por vir. Ela espera que seja mais significativa do que algumas e menos do que outras.
Casa de desassossego
No meu aniversário de quarenta anos comecei a projetar uma casa disfuncional. Usei toda minha experiência em engenharia e arquitetura para conceber uma casa incapaz de servir como morada para um homem. O projeto ficou pronto em dois meses e procurei incorporar nele todos os erros possíveis. Queria espaços inviáveis, corredores íngremes, portas gordas e imóveis, janelas que matassem paisagens e um quarto de dormir incapaz de causar sono.
A casa foi terminada dois anos depois. Tive que convencer os pedreiros a não melhorarem o projeto. Comprei os melhores materiais e os desperdicei numa construção soberba e grandiloquente. A casa, uma vez erigida, parecia gritar com sua porta-boca maneirista. Suas janelas sorridentes não eram convidativas e fitavam os transeuntes com uma raiva contida.
Mudei para casa num domingo de sol. Trouxe meus móveis, que tiveram que ser mutilados para caberem naqueles ângulos inapropriados. A cama precisou de um calço para não escorregar quarto afora. A geladeira não encontrou tomada. O sofá não pôde oferecer sossego. E a varanda, pobre arremedo de nada, não convidava para devaneios noturnos.
Vivi naquela casa por anos a fio, incomodado, escorchado, nauseabundo, cambaleante. A luz tênue das lâmpadas escondidas não permitia que transitasse à noite. Feri as pernas, as mãos e o rosto. Fiz a casa para que ela me expulsasse. Fui saindo aos poucos, mas confesso que amei cada momento de sua ternura arredia.
Nove cidades
Encontrei aqueles olhos azuis e penetrantes em nove cidades. Eram sempre os mesmos olhos, mas adornavam diferentes rostos.
Na primeira cidade, eles estavam em Liliana, que caminhava balançando seus longos cabelos negros e mexia as mãos brancas como um roedor inquieto. Seu corpo pequeno e simétrico parecia ter sido talhado numa aula de anatomia e suas frases desconexas me deixavam sempre sem chão. E eu me sentia bem ao seu lado.
Na segunda cidade, eles mal piscavam no rosto de Carolina, que vivia vidrada em não se sabe o quê que a espreitava durante o sono. Seu linguajar era tão obscuro que parecia que dizia tudo com letras de forma. Eu sentia medo, mas um medo bom.
Na terceira cidade, os olhos azuis estavam em duas irmãs idênticas. Não lembro mais seus nomes, mas elas falavam em uníssono e diziam que morreriam juntas. Queriam usar sempre roupas diferentes porque “não havia personalidade em duas plantas exatamente iguais”. Uma delas chegou a colocar uma pinta falsa-Marilyn-Monroe para fazer tipo. Eu não me sentia tão bem quando elas estavam juntas, mas sozinhas elas me encantavam.
Na quarta cidade, os olhos azuis eram quase verdes por causa do efeito do sol nas paredes claras de Giovanna. Seu quarto era mais interessante do que suas conversas e vez por outra eu cochilava enquanto ela se perdia em devaneios fúteis. Jamais me senti mal ao seu lado, mas...
Na quinta cidade havia uma moça que se chamava Lídia e eu achava seu rosto mais bonito do que seu nome. Lídia era irmã de Lidiane e prima de Lindalva. Nenhuma delas jamais saiu daquela cidade e suas vidas murcharam bem antes da juventude acabar. Lídia dizia querer fazer muitas coisas. Seus olhos azuis brilhavam com isso, mas ela de fato nunca fez nada. Eu ficava um pouco triste ao seu lado.
Na sexta cidade viveu Alessandra, que morreu quando estávamos na quinta-série. Ela tinha cabelos louros encaracolados e gostava de abrir um largo sorriso quando estava nervosa. Dizia que doía menos do que trincar os dentes. Até hoje penso em nossas conversas, mas não me lembro do que falávamos...
Na sétima cidade havia alguém que gostaria de esquecer, mas não consigo...
Na oitava cidade encontrei Luciana, que, apesar de lúcida, parecia um bando de loucos. Ela conseguia conversar com os olhos, as mãos e a boca. Cruzava quatro assuntos sem se perder e ainda podia fazer outra atividade qualquer, como escrever ou cortar as unhas. Luciana era tão intensa que se cansou logo...
Na nona cidade eu cheguei velho. Vi diversos pares de olhos, mas não fui seduzido por nenhum. Apenas uma vez quis morrer por alguém, mas ela era propositalmente inatingível.
A coisa menos viva
Hoje eu sou a coisa menos viva que está guardada nesta casa. Minha respiração é tão tênue que não embaça o vidro da janela quando me aproximo. O mundo ficou maior do lado de fora, e até os refúgios escuros daqui de dentro parecem impessoais. Aquela centelha luminosa que me impulsionava não sobreviveria a uma rajada tênue de vento. Aquele pequeno brilho dos olhos sucumbiu ao atropelo dos anos.
Hoje eu sou a mobília mais discreta que decora esta casa. As pernas plantadas no chão, todavia, não conseguem firmeza. O canto que minha silhueta adorna não está em nenhum cômodo importante. Sou como aqueles móveis que existem para não serem vistos, que guardam lembranças nas gavetas e restos não descartados no topo. Que recebem um esbarrão e um resmungo vez ou outra, mas permanecem criados-mudos ao lado da soberana cama.
Hoje eu sou a coisa mais esquisita que já viveu na normalidade. Aquele passo ensaiado nem sempre sai correto. A frase perfeita estremece com os desvarios do cérebro. O riso polido amarela diante da incerta certeza. A barriga crescida não convence o torso de suas limitações. Vez ou outra, um exagero restabelece uma falsa ordem. Até que as manhãs de esquecimento empurram a vontade para alguma indecência que não pode mais ser plenamente vivida.
Aforismo número um
Angústia é o nome que a gente dá ao medo mal nascido. É aquele aperto sem alicate que nasce não se sabe bem de onde até a coisa estar visível no horizonte. Talvez a angústia seja mais produtiva que o medo. Quando a coisa se revela na sua integralidade, com seus tentáculos viscerais e sua boca cavernosa, ela não é mais dúbia. Coisas não dúbias, coisas reveladas, coisas inteiras e coerentes não são interessantes. Estão para a inspiração como a falsa arte está para o significado. Um monstro com horizontes é como um animal classificado num manual de zoologia. Você sabe onde está o ferrão, você conhece o peso da mordida, você sabe onde colocar a mão. A mão não deveria ser sempre guiada. Está aí uma das coisas que acredito um pouco...
Aforismo número dois
Não há possibilidade de que me entregue de corpo e alma a um projeto. O projeto é a ideia morta, concebida, aprovada, esquadrinhada e cerceada. Onde não há momentos de loucura existe uma prisão polida, inimiga do ato criador. Gosto de fazer projetos para enterrá-los por anos, até que algum acidente me leve de volta a eles para violá-los em sua essência original. Gosto de juntar pedaços de história para obter significados na colagem. Gosto de invadir cenários com monstros improváveis e efêmeros. Gosto de dizer que não quero terminar nada.Mas às vezes, somente às vezes, uma trama pede uma solução, coisa que costumo ignorar...
Carlos Eduardo Marotta Petersnasceu em Penápolis (SP) em 1970. É historiador, doutor em História Social pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Assis. Atua como professor no Centro Universitário Toledo de Araçatuba, onde leciona as disciplinas de Estética e História da Arte, História Moderna e História Contemporânea, além de dirigir o grupo de pesquisa “Imaginário e Representações Sociais”. Publicou, com Sidnei Olívio, o livro “Mutações: 20 contos soturnos” e organizou as obras “Seres fantásticos do Brasil” e “História do cinema, cinema da história” (os três pela editora Scortecci). Publica periodicamente artigos em revistas científicas brasileiras.
Mantêm uma página no facebook chamada “Arte Sem Amarras”.