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casa e cidade como não-lugares, sertão como palimpsesto - poemas de Edelson Nagues

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A Moscou, um palimpsesto (foto: Humberto Araújo)











Palavra em risco
                                        

Como se houvera um tempo
em que já não fôssemos feras.

Como se se buscasse o alívio
de um oásis no Saara.

Como se a palavra em risco
rompesse o fio da espada.

E o veneno da serpente
não cegasse a visão da esfera.

E virassem brisa púrpura
as manchas no chão da sala.

E os traços curvilíneos
criados por mãos libertárias

limassem novos contornos
nos homens feitos de arestas.

E o tempo, enfim, que se fora,
seria o que nunca mais era.










Urbe


A cidade, espessa
(sístole e diástole):
entropia urgente.

Motores e corpos
latejam desejos
no fumo dos becos.

Há ranger de ferros,
de ossos e de dentes
na junção dos díspares.

Um olhar caótico
depara o concreto
que empareda o medo.

As palavras-pássaros
jamais se capturam
nas gaiolas-mentes.

E bocas vorazes
engolem silêncios
e pastéis de vento.

Frêmitos no sexo:
um vômito cíclico
na pétala aberta.

Átimos de dor
reprisam-se em seus
eternos fragmentos.

E nenhuma placa
aplaca o desnorte
da turba que sofre.

A cidade-esfinge:
máquina que mói
putas e poetas.










Tempus edax rerum


Para Carlos Drummond de Andrade, in memoriam.

Tempo, este, que tudo morde
— um cão faminto e sem dono.
Caninos a moer mentes:
homens-zumbis, se não mortos.

Tempo que nos amordaça
na profusão das palavras.
As vidas, em cristal líquido,
nas telas se liquefazem.

Tempo de rancor e medo
— dois sentimentos num só.
O outro compartilha a rede,
mas nunca almoça conosco.

Tempo de fé dissoluta.
Falsos profetas — o trízimo.
Universal confraria
de almas expostas à venda.

Tempo que, assim, nos divide:
corações, cérebros, punhos
pulsam, confusos, nas ruas.
[Um símbolo que nos salve!]

Tempo de mãos pedregosas.
Nenhuma carrega o mundo.
Antes, ferem o diverso,
ainda que também humano.

Tempo com águas passadas
a volver, por sob a ponte,
lançando em cárceres fétidos
toda sorte de esperança.

Da rosa, o povo não sabe.
[A dita que rompeu o asfalto.]
Nem memória, nem resíduo.
Ó Carlos, bem que avisaste!




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Daquilo que corrói


Intrínseco —
como um navio
encalacrado na tarde.

Num tempo em que
                   temporais
desalojam pássaros
dos desvãos dos telhados.

A maçã,
sofregamente negada,
subtrai o elo
         que jamais houvera.

Os olhos de cobra
          a vazar o feixe
do vazio que, assim,
                           se doa.

Já os dentes
descarnam o silêncio
na sangria do vinho
          que escorre dos corpos.

As trêmulas mãos
rabiscam espantos
          em toscos grafismos.

E os pés, carcomidos,
rendem-se ao ofício
          de trilhar velhas sendas.










A casa


Pela fresta da porta,
um vácuo de luz
a corromper a retina.

Por entre os desvãos,
a desmemória entra e sai,
sem jamais ter saído.

Venezianas cerradas,
no intuito de prender
o que acaso restara.

Poeira sobre os objetos:
o tempo de espera amassa
o barro na acidez da saliva.

[Palavras houvesse, riscariam
uma cicatriz no silêncio.]

Rumores de morte
bafejam o jardim,
sobre esqueletos de cães
em disformes arquétipos.

Pássaros empalhados
nas árvores ressequidas.
Remoinhos ciscam folhas,
espalhando-as a esmo.

Um hálito de passado
vem com a brisa da tarde.

A casa, agora: um não-lugar.

Os moradores [não mais]:
reflexos distorcidos
num espelho fosco.
[Já não me reconheço neles.]

Em meio ao matagal,
o portão de ferro,
carcomido pela ferrugem,
aponta uma saída impossível.










Canto de algibeira e pó

Para Elomar Figueira de Mello


É deveras vasto esse sertão
que se revela dos teus palimpsestos.
Como esse povo que tu criaste,
no limiar do signo da terra
do pó ao barro, com suor no rosto ,
que se levanta do rés do chão.

Teu canto demiurgo: ave de prata
moldada naintenção do voo,
em um movimento intrínseco,
por dentro dos sete castelos
que a litania aviva na memória,
com o fogo da fé que tu professas.

Neste instante, nesta agonia,
busco, assim, o Brasil profundo,
que se alheou de si e de nós.
Na ferrugem da pátina do chão,
sob os cascos duros dos carneiros,
que nada sabem dos homens perdidos.

Um país e seu povo imanente
que aflorem das águas dos teus rios,
forjados na quimera atemporal
[num tempo, então, eclesiástico,
do couro do chapéu que cobre a fronte],
raiz do teu paganismo cristão.

Enquanto teu cantar me transpassa,
alhures, a cidade se enreda
na profusão de palavras mudas,
nos rituais, nos mitos, nos dejetos,
nos miasmasdas ruas e dos becos,
que nada sabem dos homens perdidos.

Menestrel de fímbrias e de teias,
quisera contigo fazer um pacto,
com o sangue arrancado ao golpe
do espinho do mandacaru;
segredar temores, ao abrigo da arte,
com esperança: palavra-pão.

Na algibeira do galope de cordas,
atravessar, veloz, este deserto.
E sangrar outro país o mesmo ,
na pulsação do nosso povo de antes.










___________________
EDELSON NAGUESé natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF. Poeta, escritor, revisor de textos e servidor público, ganhou vários prêmios em concursos literários nacionais e tem contos, poemas, resenhas e artigos publicados em diversos portais da internet, tais como: Zunái, Germina, Musa Rara,Samizdat, Revista Biografia, Recantos da Letras, Poetas S/A e Revista ContempoArtes, entre outros. Publicou, pela Editora Scortecci, os livros Humanos, de contos, e Águas de clausura,de poesia (vencedor do X Prêmio Literário Asabeça). É coautor do CD Anad Rao musica poemas de Edelson Nagues. Em 2015, organizou a coletânea de contos Respeitável público: histórias de circo e outras tragédias (Editora Penalux). Das várias antologias impressas de que participa, destacam-se: :Horas partidas, de contos, organizada por Henriette Effenberger (Ed. Penalux), e Tanto mar sem céu, de poesia, organizada por Claudio Daniel (Lumme Editor).



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