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O gramofone, o projetor e a mercearia - Cego Aderaldo, a lenda, pela escrita de Cláudio Portella.

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Cego Aderaldo, por Jô Oliveira




Em 1931, Cego Aderaldo, cansado de viajar pelo sertão, sempre cantando – todo o povo, sem exagero, queria ouvi-lo – resolve comprar o que, então, era a grande novidade em Fortaleza: um gramofone. Aplicou o que tinha, cem mil réis, e adquiriu o gramofone, discos e agulhas. Voltou a viajar pelo sertão, desta vez com a geringonça a tiracolo:

      ― Chega! Aí vem o Cego Aderaldo com um bicho esquisito!

      O bicho esquisito era o gramofone. Aderaldo explicava:

      ― Meus amigos, trago aqui a última novidade da cidade. É uma
máquina assombrosa. Toca tudo que se desejar ouvir.

      E botava os discos pra tocar. Choviam perguntas:

      ― Tem gente dentro desse bicho?
      ― Como é que ele canta?
      ― O que é que tem dentro dele que canta? Será visagem?
     
      Cobrava cem réis por disco tocado. Os discos, de tanto tocarem, estragavam-se rápido. Cego Aderaldo ganhou muito dinheiro com o gramofone. No final da “apresentação”, sempre insistiam para o cego cantar.  E ele tinha que cantar, nem que fossem alguns versos.
      Em 1933, com um bom dinheiro propiciado pelo gramofone, o cantador põe em prática mais uma de suas ideias. Compra uma máquina exibidora de filme, “Pathé Baby”, e dois burros. Consegue algumas fitas variadas e se embrenha novamente no sertão. Dessa vez, como exibidor de filmes. Só aceitando cantorias bem pagas e pelejas com cantadores de categoria.
      Seu cinema itinerante ficou logo famoso. Suas fitas eram antigas, muitas estavam deterioradas, e tratavam da chegada do Rei Alberto, da Bélgica, ao Brasil, e de fatos pitorescos da vida de Napoleão Bonaparte.
      O filme era projetado num lençol branco amarrado na janela da casa, e Aderaldo que contava as voltas da manivela da máquina exibidora de filmes, sabendo assim o que se desenrolava a cada momento na fita, ia descrevendo as cenas. Os sertanejos falavam:

      ― E dizer que é um cego!
      ― Parece que o homem vê!
      ― Sabe tudo! Não erra nada!
     
      O filme mais completo que Aderaldo possuía era a Paixão de Cristo, que suscitava muito choro quando era projetado. Cego Aderaldo andou quase todo o sertão do Ceará a exibir filmes.
      Depois do gramofone e do cinema, Cego Aderaldo percebeu que seu negócio era mesmo cantar. Guardou o gramofone e o projetor e se atirou outra vez às cantorias. Dessa vez, mais determinado ainda, percorre o estado inteiro, cantando em mil terreiros, terçando voz, cordas e versos com os melhores cantadores do Nordeste. Quando chega a Fortaleza, em 1942, vinha cheio de fama e dinheiro.
      Resolve então descansar e pôr em prática mais uma de suas ideias. Em entrevista ao repórter Pery Augusto, de um diário local, manifesta seu interesse em encontrar-se com o interventor federal, Dr. Menezes Pimentel, a fim de lhe falar sobre o desejo de abrir uma mercearia bem sortida. Com a publicação da entrevista, Menezes Pimentel manda chamá-lo e o encaminha ao secretário da Fazenda, Dr. José Martins Rodrigues. Este, por sua vez, o encaminha ao Dr. Raimundo Alencar Araripe, prefeito de Fortaleza, que o aconselha a procurar a Alfândega e falar com Dr. Luiz Sucupira.
      Depois de enfrentar toda a burocracia, obtém a licença para a mercearia e se estabelece na Rua da Bomba, nº 2. Com a ajuda dos amigos, surte bem seu comércio. Havia no estabelecimento até um radinho, ligado o dia inteiro, para que os fregueses curtissem os sucessos da época. Tudo ia bem, até o Cego começar a vender fiado. Havia fregueses que o elogiavam por mais de uma hora, ressaltando a qualidade de suas cantorias, para, no final, pedir fiado.
      Aderaldo não levava mesmo jeito para o comércio. Não quebrou mais rápido porque, aos sábados, ainda aceitava convites para cantorias e desafios. Não fosse isso, estaria numa situação delicada. Todos queriam tirar proveito da mercearia de Aderaldo. Houve até um caso de um sujeito que, depois de comprar uma garrafa de aguardente, mostrando-se arrependido, devolveu a garrafa e recebeu o dinheiro. Mas quando o Cego cheirou o que havia na garrafa, não passava de água.
      O cantador viu ali o castigo que era querer mudar o seu destino. Fechou a mercearia. O prejuízo havia sido grande, mas nem se importou, voltou a cantar:

Voltei de novo a cantar,
porque esta é a minha sorte.
Minhas cantigas me dão
roupa, comida e transporte.
Deixarei este dever,
quando um dia receber
o beijo fatal da Morte!

      Ademar de Barros, então governador de São Paulo, deu de presente ao cantador um projetor cinematográfico de 16mm. Com o presente, o Cego inicia uma nova fase “cinematográfica” que não dura muito, pois, com pouco tempo de uso o projetor pega fogo.



Poema de Cego Aderaldo

O NAMORO DO CEGO

Vinte e seis filhos alheios
Que foram por mim criados,
Todos foram muito bons
Amiguinhos dedicados.
Eu achava graça neles
De serem tão namorados.

Joãozinho era um menino
Entre os outros, bem jeitoso,
Dizia sempre: – O namoro
É um caso melindroso
Precisa um bonito trajo,
Perfume do mais cheiroso.

Alguém diz que o namoro
É fazer papel de louco,
Mas eu digo diferente,
Que todo namoro é pouco.
É o mesmo que comer
Queijo com doce de coco.

Nelzinho, dizia, João,
– Namoro é cousa sagrada;
O homem que não namora,
No mundo não goza nada;
Cada rapaz deve ter
Com ele uma namorada.

Neste tempo apareceu,
De lá da Nova Floresta,
Um convite com urgência
Para nós irmos à festa,
Partimos sem ter demora,
Com nossa pequena orquestra.



Chegamos todos na festa
Onde fomos convidado,
Já todos tinham consigo
Uma menina de lado.
Mas eu, como pobre cego,
Estava desocupado.

Depois, chegou uma moça,
Sentou-se junto a Joãozinho,
E outra, muito risonha,
Ficou perto do Nelzinho,
E uma chata, calada,
Sentou-se ali bem pertinho.

Eu senti dentro da alma
A forma duma alegria.
Pensei logo hoje é minha noite,
Amanhã será meu dia.
Era os fluídos do amor
Que chegou e eu não sabia...

A menina do João
Era até bem parecida
E a outra, do Nelzinho,
Era um tanto retraída.
Os rapazes namoravam
Com o maior prazer da vida.

A que estava junto a mim
Cheirava a flor de arruda,
Cheirava a cravo e canela,
Era um Deus nos acuda.
Se conservava calada,
Parece que era muda.

Já era de madrugada,
Os galos estavam cantando.
Elas diziam queixosas:
– Papai já está nos chamando.
Daquelas duas mocinhas
Já tinha uma chorando...
Joãozinho dizia: – Meninas,
Vocês agora já vão,
Para nós morreu a festa,
Entristeceu o salão.
Meu anjo, leve consigo
O meu leal coração.

Seguiram as duas mocinhas
E o pai das meninas atrás.
Nelzinho, ficou muito triste,
Suspirando e dando ais,
Nelzinho chorava com pena,
João chorava muito mais.

Nelzinho perdeu sua prenda,
Joãozinho perdeu seu amor,
Todos dois ficaram tristes,
Toda a alegria findou,
E eu fiquei muito alegre
Porque a minha ficou.

Eu via na minha mente,
Pertinho de mim sentada,
Aquela linda menina
Que eu julguei ser namorada.
Sincera e sempre sisuda,
Se conservava calada.

Não falava, não sorria;
Sempre em ordem do costume,
Mas do seu lado eu sentia
Um especial perfume;
Tanto que dos meus meninos
Eu já estava com ciúme.

Depois, chegou um rapaz
De braço com uma mocinha,
Dizendo: Esta moça
Está pedindo uma modinha.
Mais satisfeito eu faria
Se tivesse sido a minha.
Comecei logo a modinha,
Escolhi uma mais bela,
Para ver se agradava
Aquela linda donzela,
Que era séria e calada,
Eu namorava com ela.

Cantei Assim:

Vou embora desta terra para a minha
Que aqui não posso ficar;
Vou partir, parto chorando,
Assim faz quem vive amando,
Ausente do seu lugar.

Vai embora o pobre homem que te amava,
Que por ti tanto sofreu,
Perseguindo e odiado,
Desta terra desprezado.
Não sei como não morreu.

Vai embora o pobre homem que te amava,
Que por ti sofreu bastante,
Já gozei delícia e gosto
E hoje tenho por desgosto
É viver de ti distante.

Parando então a modinha,
Soltei o meu violão.
Toquei então na menina
Pelo contato da mão:
Conheci perfeitamente
Que a caboca era um peixão.

Como o amor era ardente,
Toquei-lhe de novo a mão,
Conheci que ela estava
Trajada em lindo fustão,
E na cintura da menina
Rodeava um cinturão.

Sentada então junto a mim
Sisuda e nem suspirava,
Não dava sinal de vida,
Não sorria e não falava
E nunca me respondia
O que eu lhe perguntava...

E pela terceira vez
Toquei, empurrando a mão,
Rasgou-se o véu do engano,
Foi grande a decepção,
Que a minha namorada,
Era um enorme pilão...

Julgava ser uma moça
E eu estava perto dela;
Foi engano, era um pilão...
No lugar duma donzela,
O perfume que me enganou
Era de cravo e canela...

Que há pouco tinham pilado
Para temperá o bolo,
Eu fiquei envergonhado,
Triste, sozinho, sem consolo:
À primeira vez que amei
Passei por safado e tolo...

Nunca mais eu amarei,
Nem quando em meu coração
Tais loucuras como estas
Que só me deram aflição,
De passar uma noite inteira
Enfincado com um pilão...


Leonardo Mota, Jacó Passarinho e o Cego Aderaldo.




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CEGO ADERALDO –Cearense (1878 – 1967). Cantador popular. Mito em vida, lenda em morte.

CLÁUDIO PORTELLA(Fortaleza, 1972) é escritor, poeta, crítico literário e jornalista cultural. Autor dos livros Bingo! (2003; segunda edição, 2015), Melhores Poemas Patativa do Assaré (2006; edição e-book, 2012), Crack(2009; segunda edição, 2015), fodaleza.com(2009), As Vísceras (2010), Cego Aderaldo (2010), o livro dos epigramas & outros poemas (2011), Net(2011), Os papéis que meus pais jogaram fora (2013), Cego Aderaldo: a vasta visão de um cantador (2013; edição e-book, 2014), Elíptico (2014), O livro das frases & outros diálogos (2014), Picos Hotel (2015), Fraturas de Relações Amorosas (2016), O panfleto das frases & demais textos (2016),Paraphoesia(2017) e Melhores Poemas Torquato Neto(2018; também em e-book). Ganhou o concurso de conto da UBENY - União Brasileira de Escritores em Nova York.




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