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não há tutorial possível para os espaços urbanos da poesia de Gabriel Morais Medeiros

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Uns gandulas
ou
sobre os registros de nevascas em Goiânia

Na cidade,
na sala dos professores,
rodas-gigantes baldias
se refletiam nos copos d'água descartáveis,
e nas escamas das contracapas
esturricadas de giz e solidão,
após a Via Anhanguera.

Rematrículas...
quadradinhos de preenchimento, programas tutoriais --

e eis que uma aluna é gandula e comprou uma blusa-blusão
para fazer a prova
em Goiás,
onde nevou.

Nesta noite deste, fumando teu cigarro,
baforadas vazias, pouco densas, esparsas como o perímetro das várzeas,
entre os muros e a cidade;

quando a cidade se abandonava, sexta à noite,
feito uma caçamba de lixo tombada ao pé da muralha
do século nove;

e as arruaças dos lixeiros, em longínquos assovios,
expulsavam caminhões para além dos dias úteis.


...



Naftas e maracujás 

'Pelo Paseo Marítimo soprava uma brisa fresca que me ajudou a espairecer. Quase não se via gente: os turistas voltavam a seus hotéis cambaleando ou cantando, e os carros, escassos, circulavam para lá e para cá com lentidão, como se todo mundo de repente estivesse esgotado, ou doente, e o esforço fluísse agora em direção às camas e aos quartos fechados'.

ROBERTO BOLAÑO. O TERCEIRO REICH.

"As universidades públicas
no Estado de São Paulo não
vão sobreviver nem mesmo por

onze

meses".

Isto profetizaste
dando uma golada
num canecão de cerveja Arrogante

creme-flavorizada,

cujos teores de álcool
chegam a catorze
por cento (ou menos);

e cujas charmosas tonalidades castanhas

são mesclas de

naftas
e maracujás.

Pese teu pressentimento,

tão relaxada estiveste
à sexta-feira, no bar boliviano:

teus cachos eram fantoches-de-polegar,
e o vento-viração os enovelava
à cadência da seda e do tabaco
que ias enrolando, concentradíssima.

Todas as jabuticabeiras
da Cidade Universitária

se prontificariam a te oferecer, se pudessem,

a cachoeira de suas folhas soltas,
feito guardanapinhos embalados pela ventania,
que desumedeceriam
o gloss e o colarinho de teus lábios
mais cintilantes a cada beberico.

Sob o teu frouxo tornozelo,
tua rasteirinha
(balouçando) era quase

flutuante,

e balizavas, com o peito de teu pé,
a calçada e o arredor da ciclovia.


...



Comentário sobre o campo magnético da Antártida (equórea)

Nos elevadores nevados
dos metrôs da Linha Amarela
em construção para dois mil e catorze,
há cintilações de argônio
oriundas de painéis e
cartazes elétricos
embutidos em prateleiras
de alvenaria:

coloridos, como máquinas de Pachinko,
expõem-se os mapeamentos
de vagões e trajetos
futuros,
em telões de acrílico
blindado.

O granizo às vezes
recobre aos ascensores
e às plataformas:

às gruas caiongas,

aos contrafortes de arrimo,

aos dragões-escavadores,

(estes, note-se, perfuram o cimento branco,
como os chifres dos megaloceros, extintos há milênios,
te retalhariam a medula e a carne congelada)

aos bruços dos guindastes e aos tapumes de borco, às guaritas recicláveis
e aos banheiros químicos
dum canteiro de obras
abaixo da terra.

Quando os sincelos,
como flocos
de mísseis transparentes,
aquarem
as trincheiras já terraplanadas
para os trilhos-espinhaços,

o vapor te será
indestrutível,
infragmentável como
calotas polares asfaltadas.








Bunkers nuns planetas-anões
ou
cronotopo do looping
  
A colonização de algumas luas,
ou a terraformação
de novos corpos celestes, noutros cronotopos,

porá
tão-somente

guaritas e vidraças
de negror blindável
à bocarra de desertos
de pó de vidro.

Lapsos-lapsos de uns semáforos
apenas
cintilarão
na planura vazia.

Bunkers nuns
planetas-anões

ou lixões higiênicos
nos sopés das escarpas,

não lhes alterarão, a fundo,

nem o relevo, nem a topografia,

sequer as temporalidades.


...



Venado Tuerto, Argentina, junho de dois mil e onze
ou
cidades-nanômetro
  
Num posto de gasolina
de Venado Tuerto,
em cada cabine
dos mictórios,

funcionários-faxineiros
têm fixado na parede (são requisitados a fixar)

os fascículos de esporte
dos jornais diurnos
e noturnos
dentro
de uma moldura-envelope,
de uma prancheta transparente,
de um cavalete translúcido,
parafusado no azulejo.

O que leio agora,
bizarramente --
ao lado de um caderno de variedades
em que figura
o golaço de Pablo Mouche,
na Bombonera, contra o Fluminense,
pelas Quartas da Libertadores --

é uma manchete agourenta, 
em letras garrafais,
não-ominosa de todo,
no entanto.

Prognosticava a notícia (saí de lá)
que em cada brecha
de maçaneta ou
empunhadura
de facão,
em cada gelatina
de ultrassonografia,
em cada pigmento
de dobradura,

talvez haja um laguinho,
uma alfurja, um aljube, um manguezal,
enfim, uma cisterna, um paul
umas
poças d’água
milimétricas,
que sejam, talvez,
a masmorra lúgubre,

o poço, o palude orbital,

de cidades

(“cidades-nanômetro ou nanocidades”, na expressão
do jornalista),

não naufragadas precisamente
mas submersas como se estivessem
no esôfago de uma alga,

e por cujas ruas microscópicas
nadassem, boiassem ou mesmo

voassem

(impelidos por
micro-descargas
de desfibriladores de baixa frequência)

buzos e caramujões
e alacrães com guelras e barbatanas
ultravioletas,
articuladores
inclusive
de uma sincronização
vocal
que lhes permitiria

intercontactar-se
através
de chiados agudos
(as vozes dos bichos)
captáveis pelas câmeras e microfones:

espectros infra-
vermelhos,
sussurros cartilaginosos

(guturalizações-cegudes
gaguejadoras,
tartamudeadoras,

guinchos estranhos de uns moluscos
invisíveis). 

Basicamente, porém,
tranquilizemo-nos:

não há como essas pragas
lograrem
a inoculação,
infestando
as terras, através de
reconfigurações
de escalas
biológicas. 

Caso fosse
de outro jeito,

qual a vacina
ou

unguento vulneral
seriam de ajuda

contra
a irrupção
praga-grassadora,

represando-a,

em tuas gengivas, em
teu pâncreas, em tua
boquinha,

desinfectando-a?


...



Chegará o tempo em que os hospitais serão festas

O tempo chegará, amor, em que os hospitais
serão
uma puta
de uma farra.

Disse-o o personagem enfermo
numa sequência de "La Notte", de Antonioni. 

O tempo chegará, em que os hospícios serão feirões
com megadescontos.

O tempo chegará em que os asilos ostentarão
trenzinhos de bufê, aéreo-flutuantes,
guinchados por plataformas
de pistões e elevadores.


...






Extintor contra a nuca

Deem um tempo
os camburões e carretas
antes de trafegarem;

o chorume atolador
das ruas e becos
ainda pouco drenados
e varridos
por

vassouras-ningrimanços

poderá ocultar tanto

caranguejos-manteiga,
longueirões parasitadores,

quanto
bombardas de prego, granadas
de cascalho.

Os perigosos,
surpreendentemente,
são aqueles (os crustáceos)
não estas (as pólvoras):

uma vez encanados
num escapamento
podem fazê-lo
fragmentar-se em ignição;

e a coluna de ar, deslocada por uma explosão
de tal porte,
equivaleria
ao choque brusco

de um extintor não-oco

contra tua nuca
sem recosto ou
estofamento.




__________________________________________________
  Gabriel Morais Medeiros nasceu em Campinas - SP, em 1988, e graduou-se em Letras pela Unicamp. Há quase vinte semestres exerce o violento ofício terrestre (como diria Rodolfo Walsh) de ser professor de Literatura, trabalhando com alunas e alunos que cursam o ensino médio. Publicou Andrômaca, quarenta semestres pela Patuá, em 2016.




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