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Ilustração: Giovanni Bragolin |
1. debaixo da mesa
I
A mãe ouve a novela no
velho rádio de válvulas.
Flora Geni floresce
amores, num soluço leve e
tenso interrompido pelo
anúncio do novo sabonete
Gessi.
O menino brinca de sonhos, a
mãe remenda uma toalha
antiga e ruça, meio triste em
seus desbotados quadrados de
um xadrez azul e branco.
As quatro mãos se movem no
mormaço de nuvem quente.
Sobre o rádio, acima do painel de
mogno, uma rosa de
plástico pende do vaso de
vidro azul, em seu vermelho
vivo, artificial. Não sopra
vento pela janela quieta e o
suor escorre meio insalubre
pelas costas da tarde quase
imóvel.
O menino alisa o papel de chocolate,
limpa folha de alumínio amassado.
Há outras, de todas as cores,
formas, em retalhos finos ou longos.
Recortes.
No chão, o menino narra com os dedos
longas e confusas histórias de damas,
príncipes, reis, nobres em suas cortes.
Num baralho sem cartas joga tudo,
um jogo difícil, na paciência de
forjar cabeças, membros, roupas
solenes e estranhos mantos
de retalho sutil.
Flora Geni chora e se alonga no
soluço, na dor da ausência, e plácida
a mãe cose. Seus ombros curvados
acompanham a linha, e a voz já
tantas vezes ouvida, que traça pontos
sobre velhos pontos.
A novela termina num acorde de
suspense. A mãe larga a agulha, dobra a
toalha e se vai.
O menino guarda seu conto,
também remendado e
pronto, na caixa de papelão.
II
Pega no ar a carambola
(cambalhotas no
sossego) trinca, morde,
ri, repinica a mão na
barriga:
Doce! (E o caldo escorre
nas covas do rosto suado)
É doce, mãe. (E varre o fiapo
da boca, rápido no gesto).
III
Um gato gordo e um
ursinho de pelúcia
descansam na cama.
Uma pata afaga o pêlo,
outra coça a orelha.
Ociosos olham o teto com
olhos vivos de vidrilho.
(Que amores infantis são esses
que nos tocam tão intensamente?)
IV
Plantas na janela balançando ao
toque de mão nas avencas de suas
pernas.
Uma chaleira na
cozinha ferve a água do
café da manhã.
– Menino bonito!
(alguém sussurra no vapor.)
Leopoldo Comitti é poeta, escritor e ensaísta. Cursou Letras e especializou-se em Literatura Brasileira. Tem doutorado em Literatura Comparada e pós-Doutorado em Comparada. Em Curitiba, foi um dos fundadores da Coo-editora, pela qual publicou Jornada (contos), e As manhas da Filó (infantil). Foi Professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), onde, além das atividades de ensino e pesquisa, dedicava-se a oficinas de criação poética. Em Minas Gerais publicou Fundo Falso, seu primeiro livro de poemas. Obteve uma bolsa de escritores da Biblioteca Nacional, em 1999, na categoria de Poesia, com Por Mares Navegados. Foi também premiado, na mesma categoria, no 4º Festival Universitário de Literatura, com Jardim Inóspito.