Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

5 poemas "A Liturgia do Tempo e outros silêncios" de Wanda Monteiro

$
0
0

Do Tempo
  
de súbito
corto_lhe o curso à foice
meço a inteireza de seu propósito
enterro estacas
para cegar vindoura estação
jogo_lhe a inerme isca da palavra

inútil intento domar o tempo
ele sempre volta ao cume
conjulga_se à revelia de minha desmedida primavera
ele sempre volta ao cume
com olhos de escárnio
mira_me
de dentro da areia
como uma irrefutável sentença

  
                                                               
Do Corpo

há quem diga que do corpo e sua concretude e solidez
mas o que há liquidez

mais de mil esferas
mais de mil partículas
mais de mil núcleos
fluindo num rio andante
na disputa
na defensa
pelas mesmas artérias
pelos mesmos veios
numa permanente luta
de vida e morte

há uma força
que lhes une e desune
que lhes funde e aparta

o rio esse corpo
que mergulha em si
denso
pesado demais para chover
e precipitar-se no ar

o corpo esse rio de sal
e sangue
lento de correr
que mal sossega
que mal respira
ilhado de vento e vazio

há quem diga que o corpo
tem a agudeza de escutar
de cheirar
de tocar
de mirar

mas o que há é plena miragem
consciência centrífuga
ilusão de ser
que reflui no verbo

o corpo é esse rio
cuja nascente
e foz
disputam a força
o espaço
o tempo
e as profundidades
no centro de um coração


                                         Do Poema

sobre o mar
o voo das marias 
asas adentram a vertigem do azul
o canto de seu voo irrompe o silêncio na dobradura da onda
no exato quando
de seu vago tempo
na inexata dança

na inteira pausa do movimento

à luz da estrela
embainhada pelo fio do poente
o poema nasce
deita na areia
e fica lá
)por ínfimo intante (

sequioso de olhos e sentidos
incapaz de rasgar a rede que os prende
na tela de líquido cristal
o poema sequer forceja ao vento
o mesmo velho vento
que sempre volta da antiguidade
para  cumprir a sina de modelar a areia

{desertor}
o poema comete suicídio
morre afogado
de água
  sal
e indiferença

                                       
Da Terra

sinto a dor mais funda da ferida aberta
e essa imensa tristeza
quando me tombam as matas
e sou golpeada pela lâmina
que treme e corta, esfacelando-me
sinto a profunda desolação ao rasgo agudo e lacinante
no arrancar das raízes pelo machado
m sua brutal dança ao meio-arco no rarefeito ar
choro o pranto abafado das verdes copas caindo ao chão
que choram a morte inútil de seus frutos no estalo dos galhos,
rompendo-se ao vento pela fúria da destruição
sendas sem luz, desvãos, escombros, silêncios no destino da sanha humana
o espasmo esmagando-me o leito, tirando-me o fôlego
na penetração estúpida e cruel de mortificante metal em minhas águas
a morte assombra-me a cada lastro de atômico-lixo em meus mares
padeço desse desencanto no fechar de olhos de minhas restingas, de meus campos e veredas, verdevida secando, queimando, esvaindo ao desprezo
pela gana
pela sanha
pela ganga impura e insana.
quebram-me as rochas
extirpam-me as fontes
envenenam-me o ar
extinguem os meu mananciais
acomete-me a aguda dor pela violação das vidas que me habitam
a dor da mãe entranhando-se nos filhos
quebrando-lhes os ossos
rompendo-lhes as veias
sangrando-lhes a carne
arrancando-lhes os pés
no solo do coração da mãe
e dos filhos
a tristeza resigna-se à sombra da morte
na morte dos dias


                                                   DoTiro

antes fosse o destino de uma guerra
mas é o tiro do escárnio
o que atinge a face da fome

a fome deitada sobre calçadas
a fome acolhida por fétidas marquises
a fome secando nos seios de uma pietá
na casca do andrajo

uma pietá feita de infortúnios
à espera de um deus

no acalanto de seus braços
a fome do filho
atira seu silêncio
no vazio da indiferença

Ilustrações: Pauline Greefhorst


Escritora e poeta é uma amazônida, nascida às margens do Rio Amazonas no coração da Amazônia, em Alenquer no Estado do Pará, Brasil. Reside há mais de 25 anos no Estado do Rio de Janeiro mas só sente-se em casa quando pisa no leito de seu rio. Advogada e mãe de três filhos, nunca se afastou de sua vocação literária. Nos últimos anos, a escritora tem se dedicado exclusivamente à literatura, com várias obras literárias ainda não publicadas, participa, como colaboradora, de vários movimentos culturais de incentivo à leitura, em várias regiões do Brasil. Wanda Monteiro publicou dezenas de seus textos poéticos nas Antologias Poesia do Brasil do Proyecto Sur Brazil, participando  dos volumes IX, XI, XIII, XV. lançados no Congresso Brasileiro de Poesia no Rio Grande do Sul. Recentemente, realizou a produção editorial, em parceria com a Professora e Escritora Deolinda Nunes, da organização da coletânea SETE Feminino de Luas e Marés que reúne 30 escritoras de várias regiões do Brasil  - uma obra que revela a voz feminina na produção literária no Brasil.
Obras: O Beijo da Chuva, Editora Amazônia, 2009, poesia;  Anverso, Editora Amazônia, 2011, Poesia;  Duas Mulheres Entardecendo, Editora Tempo, 2011, Romance escrito em parceria com a escritora Maria Helena Latini; Aquatempo– Sementes líricas, Editora Literacidade, 2016.

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Trending Articles