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A aranha - Antonio LaCarne

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Ilustração: Jessica Lorraine
      
          A aranha enorme e obscura estava escondida debaixo da cama, enquanto os dois corpos se entrelaçavam sobre um colchão ortopédico – e ouvia-se o ranger de dentes, e os gritos abafados que a união entre pessoas que se desejam proporciona.
            A cama era de madeira negra, antiga, talvez resistente igual ao cinismo, igual ao frio da madrugada e ao desprezo ao telefone. Era uma cama que não se desmontava, precisava ser carregada com cuidado, assim como a aranha, assim como o que é passível de perder a vida a qualquer momento.
            A aranha permanecia imóvel, alheia, como se possíveis presas ali no quarto não lhe chamassem a atenção para a fome que se descortina ao que também é vivo e invertebrado.
            A aranha arfava discreta, impercebível aos olhos distraídos de qualquer pessoa. Ela era impenetrável e grotesca como se caminhasse lentamente sobre o corpo de um bebê. Os ruídos e os movimentos bruscos da grade da cama provocavam nela movimentos milimétricos. Era durante a noite que elas caçavam, porém alguma coisa a impedia e a atiçava gradativamente.
            Mas sobre a cama havia um homem nu e uma boneca inflável.
            Sobre acama havia um homem de sessenta anos, grisalho, solteiro e com o colesterol nas alturas. Ele enfiava a língua no orifício redondo, pintado de vermelho que era a boca daquela mulher de plástico.
            No vai e vem do desejo, ele sussurrava e imaginava uma mulher real pronta a satisfazê-lo, calada, de olhos fechados, uma mulher estática como bonecas de porcelana – mas nunca como aquela boneca desengonçada.
            Era a compensação difícil para si mesmo, a tara pós-moderna, o ritual secreto da solidão.
            Então a aranha, talvez incomodada ou curiosa, escalou lentamente o pé da cama até encontrar o colchão, e ali se manteve intacta, em contraste com o lençol branco demais.
            O homem adormecera após o gozo verossímil.
            A caranguejeira se aproximou do homem,talvez atraída por alguma fagulha de desejo?
            O corpo do homem sem pelos seria o terreno propício para que ela, sem ser percebida, atingisse o seu objetivo. Um objetivo íntimo das aranhas.
            E o objetivo da caranguejeira era posicionar-se sobre rosto do homem, que ao abrir os olhos – por um milésimo de segundo –, estava prestes a gritar de horror. Porém quem havia se horrorizado milésimos de segundos antes foi aranha, que lhe fisgou a pupila antes mesmo que ela se dilatasse.
            O homem arrancou a aranha do rosto, esmagando-a com as mãos, aos gritos de desespero. Os pelos urticantes penetraram em suas narinas e ele estava prestes a sufocar. O coração batia cada vez mais rápido, a dor era insuportável.
            O homem caiu de joelhos ao pé da cama, que se desmontou, barulhenta, inesperadamente igual a um vulcãoem erupção na ilha de Java. Vulcão em formato de cone formado pelo magma extravasado.
            O magma daquele homem seria o próprio coração impedido de ultrapassar sua caixa torácica.
            Mas ele não estava morto.
            E sobre o rosto da boneca inflável,outra aranha, uma bem menor, talvez faminta, talvez imitando o comportamento da mãe – ou apenas horrorizada.
           





Antônio LaCarneé cearense, autor de “Salão Chinês” (Patuá, 2014). Seus textos fizeram parte das antologias “A polêmica vida do amor” (Oito e Meio, 2011), “A nossos pés” (7Letras, 2017) e “Golpe: antologia-manifesto” (Nosotros Editorial, 2017). Seus contos e poemas fazem parte de antologias literárias e alguns de seus poemas foram publicados na Colômbia.




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