Confissão
É um pequeno segredo. Está bem, não é um pequeno segredo, é uma confissão, uma tremenda confissão. Veja bem, não sou má pessoa, nunca fui, sou apegada ao que é vivo, decerto. Quando criança, tive cachorro e gato, amando-os e respeitando-os, bem como a um peixe que levei a óbito imensamente sem querer fazê-lo, apenas por vontade de lavá-lo, deixá-lo limpo com sabão líquido e leves massagens — o peixe, no dia seguinte, boiava no aquário, duro, translúcido, mas está claro que não foi proposital e devo dizer que muito sofri com o ocorrido. O que venho contar, todavia, é um tanto mais maldoso e fúnebre, cretino e ordinário de minha parte. Eu matei um pássaro. Eu matei um pássaro a sangue frio, e nada tinha que ver com o bicho engaiolado, ou melhor, tinha, mas a culpa era das circunstâncias, e eu o matei.
Veja bem, era um janeiro muito quente, tão quente que eu estava dormindo nua todas as noites no piso morno da minha varanda. Eu tinha um pássaro que nunca havia me incomodado, sua gaiola ficava posicionada na varanda, vez ou outra eu sentava lá para ler ou fumar ou tomar um café olhando o céu e me era indiferente, o pássaro. Nunca havia me demorado prestando atenção nele, lhe punha comida, água, enfim, coexistíamos. Mas, já disse, era um janeiro quente e eu praticamente me havia mudado para a varanda. Talvez fosse um verão muito quente para ele também — meu pássaro não tinha nome — porque ele piava irritantemente o dia inteiro. Às dez ou onze da noite, ele dormia, acordando pontualmente às cinco horas da manhã e começando a piar no meu ouvido; a varanda era muito estreita. Pus a gaiola na sala por alguns dias, mas me interfonou o vizinho pedindo que parasse com aquela barulheira dos diabos, alegando não conseguir dormir e já ser por demais cansativo o trabalho semanal para ele e sua esposa. Ora, a gaiola voltou para a varanda. Eu tinha, com sorte, sete horas de paz. Durante o dia, fumava lambendo meu suor, completamente sem paz dentro de casa, sem um puto pra tomar uma cerveja sequer, enlouquecendo com o pássaro. Comecei a soltar longas fumaças do meu cigarro dentro da gaiola; terrivelmente, eu observava o pássaro mover-se todo e rejeitar a fumaça pulando de um canto a outro. Ele não piava, eu ria. Mas isso era apenas um paliativo; bastava um tempo para ele voltar a piar como se quisesse me punir, me castigar, me infernizar a vida até o final dos dias. Foi numa dessas manhãs, às cinco, que eu dormia com a cabeça encostada na gaiola — certamente, terminei adormecendo assim depois das onze. Acontece que eu dormia e ele piou. Acordei completamente transtornada, chacoalhei a gaiola, o pobre do bicho caiu pra lá e pra cá, deu pequenos voos rasantes, eu atirei a gaiola longe, escorregando na água que havia posto para que ele bebesse. Talvez isso tenha me deixado com mais ódio, não sei, o fato é que entrei no apartamento minúsculo em busca de qualquer coisa que pusesse fim à vida do animal. Mas eu não queria cortar o bicho, ver sangue, também não era pra tanta carnificina. Eu não queria soltá-lo, queria fazê-lo pagar por ser tão inconveniente, mas de modo silencioso — nem por isso indolor, no entanto. Pressionei o desodorante até que a lata ficasse vazia de spray. Mas o pássaro não morreu. Agonizou um pouco, lento, como se zombasse até da morte. Veja bem, desisti do pássaro. Aquele infeliz me havia vencido. Acendi um cigarro e saí de casa, não podia suportar o cheiro de flores silvestres misturado com lavanda que já invadia a sala. Passei o dia fora, estive por aí, bebi cerveja de graça e vi o mar. Quando cheguei de volta ao apartamento, já passava das onze. O silêncio reinava. Devo aproveitar enquanto o bicho dorme, pensei. Fui até a gaiola e não mais havia do que o cadáver do pássaro, vencido. Duro, com os pés pra cima, suplicando meu dó. Morrera, então, aquele filho da puta. Veja bem, passei uma noite dos diabos, não pude crer que havia matado o pássaro, já lhe disse que não sou má pessoa.
Longe da Escandinávia
Eu teria ido quase a qualquer lugar. Apeteciam-me os lugares frios e com pouca gente. Minha única exigência era o completo isolamento. Pensei em alguma ilha da Escandinávia, mas todo o trâmite me parecia tão pesaroso e havia também a questão do idioma – não sou muito dada à civilização e estaria todo o tempo sem praticar ou conhecer de modo mais profundo, se assim posso dizer, a língua –, enfim, tudo me parecia tão pesaroso e tampouco minhas economias eram suficientes. Era preciso um lugar afastado o bastante e acessível ao meu novo padrão de vida, em que existiam apenas minhas velhas economias.
A vida nessa ilha, vila ou o que seja isso aqui é muito tranquila, salvos pequenos delitos cometidos aqui e ali, não em curto espaço de tempo. Por se tratar de um lugar tão pequeno, as coisas geralmente são rapidamente resolvidas. Eu não sei bem, pra falar a verdade, e não vou ceder à tentação de mentir. Ouço uma história ou outra quando vou ao centro e tenho contato com gente, e raramente tenho, sendo o que me parece: um lugar razoavelmente tranquilo. É certo que meu contato com as pessoas é ínfimo, mas não sou de todo só – e mais adiante falarei sobre. Aliás, vou falar agora. Certo dia, apareceu um gato em frente à minha casa. Dei-lhe um pouco de pão e leite. À tarde, quando abri as portas para deixar entrar as réstias de sol, ele também entrou e cá está até hoje. Chamo-lhe Tito. Ele é um tanto temperamental. Se passo o dia lendo sem dar-lhe a mínima, ele mia até que eu já não possa prosseguir com a leitura e vá acariciá-lo. Se me sinto só, no entanto, não lhe importa; sai por aí a emprenhar gatas e só volta ao anoitecer. Há dias, contudo, em que estamos quase na mesma sintonia. Então ele vem, interrompe minha leitura já gasta e aconchega-se no meu colo, onde fica por um bom tempo. Enquanto afundo as pontas dos dedos em seu pelo macio, penso que foi muito bom Tito ter acontecido em minha vida.
As noites são bem frias, especialmente no inverno. As ondas golpeiam as janelas e chega-se a pensar que vão quebrar os vidros. Pela manhã, o sol nasce morno e a maré começa a vazar. Ainda é frio e o vento amedronta. Vê-se uma enorme faixa de areia, até que começa o mar. Quando o sol se põe, o oceano volta a encher, mas não invade a casa. De cá, fico olhando o movimento plácido das águas, vejo um barco ou outro, pedras e neblina. Assim é essa ilha no inverno. A escuridão tem algo que me atrai. Essa capacidade de deixar tudo mais misterioso, acho. Há o breu e, rapidamente, um lugar conhecido e inofensivo torna-se assombrosamente inabitável. Quando a manhã traz os primeiros fios de luz, tem-se então a redescoberta: não há demônios, só serenidade e calmaria. É permitido existir, viver, habitar.
O fato é que. O isolamento que almejei não era exatamente o que eu esperava. Mesmo com Tito, o isolamento atrás do qual tanto corri me sufoca a garganta. Há por aqui, sempre à noite, um estranho respirar. Talvez eu esteja louca ou demasiadamente privada de outra gente, o que, não sei, possivelmente afetaria minha sanidade mental. A questão é que me parece muito real essa presença que tenho percebido além de Tito. Há algo aqui. Uma respiração latente, embora refreada. Ataca-me sutilmente a nunca, tenho calafrios e examino todo o ambiente, mas nunca há nada além do vento, do barulho das folhas e da água nas pedras maciças, vezenquando um movimento de Tito seguido de um espichar-se lento e demorado. Por fim, é tudo. Mas a respiração existe. É um absurdo. Um absurdo que, por vezes, é terrivelmente pavoroso. Já me habituei a contar até três em situações de extremíssimo pavor, inventei para mim esse mantra.
Às vezes, sinto tanta falta de timbres humanos que, na habitual insônia, rio na minha cama. Não enxergo um palmo além do nariz e rio. Quando percebo minha voz estridente ecoando na escuridão, me assusto e corto a gargalhada pelo meio, como um ratinho assustado. É patético.
Agora. Quero muito dormir, mas não consigo. Fecho os olhos e finjo que estou no fundo do mar e é noite. Não sei se lá nas profundezas inimagináveis pode-se distinguir dia e noite, mas a questão é o que me acalma: estar imersa em líquido escuro e denso. Um, dois, três. Só Tito. Sou muito afeita ao que é líquido, fluido já me disse alguém. Conheço uma pessoa que não conseguiu terminar o curso de odontologia porque quando começou a estagiar descobriu que era avessa a fluidos humanos. Eu gosto. Sangue, suor, saliva, lágrima, esperma, pus. Gosto. Essa ilha vai me matar, um dia. Quem me diz isso é o uivo desesperado do vento que sopra do mar. Alguém bate asas aqui, respira na minha nuca, come no meu prato, me espreita. Um, dois, três. É só Tito que se exaspera todo, mas muito contidamente, enquanto espera a hora certa de dar o bote em uma mariposa viva, petrificada de angústia na janela fechada.
O menino
Essa criança talvez seja minha dívida com o mundo. Por que só consigo sentar-me e escrever sobre ela? Mal me aproximo, mal a tomo no colo. Somente a observo e a sinto. Sinto-a completa em mim. Desde que nasceu, tenho esse medo. Não chego perto — quebraria, a criança? A família diz que é assim mesmo, que homem não tem jeito com criança pequena. Graças a Deus. Não sei até quando, salvo. Agora tenho esse medo de contar sobre ela pra vocês. Terminarei contando. Deixem que eu me sinta mais à vontade.
É uma criança especial. Acho muito hipócrita essa coisa de chamar uma criança doente de especial, mas talvez seja mais bonito pra ela mesmo. É uma criança especial, muito especial.O menino tem dois anos. Não fala, pouco se mexe e não sustenta o pescoço. Todos acham que um dia ele pode vir a sustentar e andar e a falar por aí, mas eu sei que não. Os médicos foram taxativos. Ele nasceu com uma ínfima parte do cérebro — é de se admirar que mexa mãos e pés e emita ruídos — porque sua mãe, quando gestante, sem saber, tomava fortes remédios para as piores dores que uma alma pode ter consigo. É claro que, quando descobriu a gravidez, parou o uso de todos, mas já era tarde. Teve seu filho, que nasceu especial.Ele cresce como qualquer criança, fica pesado para ser transportado, mas as três mulheres com quem vive cuidam-no muito bem, curvando a coluna a cada dia, carregando-o a torto e à direita, triturando alimentos no liquidificador e pondo-o no colo para que ele almoce papas coloridas em um longo espaço de tempo. Manipulam os remédios infindos que ele toma a cada quarto de hora, põem-no na cama cercado de almofadas para que não caia, e vivem a esperar que ele acorde ou tussa ou tenha um princípio de tremor que certos médicos já preveniram com anticonvulsivantes.Me sinto completamente invasivo. Essa criança não pensa, e eu sento a escrever sobre ela para quem quiser ler. Você. Será que você está com pena da minha criança? Não gostaria de que você sentisse pena dela, porque sempre acreditei que o sentimento de pena prejudica a pessoa por quem se tem pena. Mas você está me lendo e eu não posso te controlar. Se eu quiser dar um fim nisso, que eu pare agora. Vou pensar se volto a escrever ou não.Voltei. Escrever sobre essa criança é a única coisa que posso fazer por ela. Não tenho escolha.Escute, moço, só vim trazer umas roupas pra ele, me deixe subir. Ele é doente, eu sou a avó. O recepcionista não esperava ouvir que a criança era doente; no máximo, que a criança estava doente, como todas ali no hospital. Deixou que a mulher subisse, enfim, pedindo que ela não se demorasse, afinal, eram regras do hospital e, certamente, ela entenderia. Então ela desbravou corredor afora, cheia de sacolas na mão e amargura nas rugas da cara.
Os dias eram longos no quarto branco de hospital. Os pais tinham pouca instrução, de forma que a avó não gostava de deixá-los a sós com o menino. Enquanto pudesse, estava lá, cercando a cama de ferro, limpando a baba que escorria constantemente, levantando o pescoço do menino que pouco durava em posição ereta.
E, quando sentada no sofá, chamava pelo seu nome, na esperança de que ele virasse a cabeça em sua direção. O que é que meu menininho está vendo do lado de lá? É a parede? Ele tá gostando da parede? Olhe pra vovó! Aqui, do lado de cá! Mas nada acontecia. Comumente, ele baixava o pescoço como um boneco de corda, apesar de todos os travesseiros usados como calço, e ela ia lá, consertava-o, olhava-o nos olhos, mexia nas bochechas, quem sabe fazia alguma prece?, tinha lágrima nos olhos.
Mal deixava que o pai também tivesse seu tempo com a criança. Mas quando ele conseguia, ficava a admirar o menino e dizer que ele tava prestando atenção na televisão. Ele gosta de cor, ó, como olha pra televisão! Você tem que ver quando entra aquele mulher vestida de amarelo, ele fica prestando atenção, sério, que é uma beleza. E fazia carinho no filho que sofria para respirar: Pombinho de pai! Parece um pombo roncando assim. É o pombinho de pai?
A mãe não gostava de hospital. Carregava consigo a terrível culpa de quando dera — não lhe faça mau julgamento, foi extremamente por falta de experiência — de quando dera ao menino cinquenta gotas de um remédio forte, em lugar do mais brando que deveria ser dado. Houve lavagem gástrica, um sofrimento terrível para a criança que só mesmo sabia chorar; desde então, ela não gostava de hospital. Mas ficava lá todo o dia e também à noite. Era ela quem, na ausência da avó, pegava pedaço de gaze para enfiar na boca do menino quando ele tossia, entupido.
A terceira mulher era um anjo. Quase não quero que isso seja uma metáfora, embora necessariamente seja; ela era um anjo na terra. Era o braço esquerdo da avó, amparou a todos quando o avô morreu e toda a casa ficou em luto. Já havia criado as crianças da casa e as crianças das crianças da casa. Agora, cuidava do menino. Eu amo essa mulher. Eu sou uma criança da criança. Ela é um anjo na terra.
Eu não sei o que estou contando aqui. Estou contando sobre a criança. O falar do menino é mais forte que eu. Eu já disse que nunca me aproximei muito dele. Mas hoje completam trinta dias de internamento e não se sabe quando ele sai de lá. Resolvi visitá-lo. Cheguei no quarto e apenas os pais estavam. Olhei para o menino durante um tempo considerável. Ele tinha uma sonda entrando pelo nariz e já me parecia um rapazinho. Como você cresceu, hein, moleque? Já já vai sair dessa, né? Sei lá o que eu poderia falar, porque minha vontade era tão somente tomá-lo em meus braços, de um jeito forte que sua vida frágil não aguentaria. Não havia muito o que fazer. O pescoço dele despencava e um dos pais ia lá e colocava de volta no lugar, tentava um calço mais eficiente. Tentei falar de outras coisas, olhei da janela o céu azul. Mas não tinha como esquecer: o menino estava lá. Falei algumas besteiras, dei aos pais uns chocolates que tinha no bolso, já que não podia dar ao menino. Saí, fumei no corredor. Voltei. Falei mais um bocado de bobagens, dessas nas quais a gente não acredita e depois até se arrepende de ter sido tão cretina; ele vai sair dessa, já já ele tá com esse pescoço duro, não é, campeão?
A novela passava, os carros buzinavam lá fora, ninguém esperava: o menino riu. Riu de boca aberta, com os dentes tortos à mostra, a baba escorrendo pelo pescoço. Ria como se lembrasse de um tempo em que fora feliz, ria uma lembrança certamente bonita porque quase gargalhava, e ficamos todos muito desconcertados — por que ria, o menino? podia ele rir?, e ele ria engasgando-se com a própria saliva, ria esquecendo-se de que não podia rir, ria olhando pro alto e estendendo os braços. O menino é realmente lindo, especial. Veja, não sei o que fazer a não ser escrever sobre ele. Você. Você consegue entender a milésima parte do que eu sinto? A avó estava em casa, era dia de descanso. Ela não viu o riso do menino.
Na maioria das vezes, eu não queria trepar. Não tirava a calcinha por nada no mundo. Esse negócio de rejeição me magoava e eu sempre fui muito sensível. Muito raramente, eu terminava dando pra ele. Ele tinha um negócio excêntrico a que eu adorava assistir e que continuo achando muito do caralho quando lembro: na hora de gozar, gargalhava forte, grunhindo de tal maneira que o assemelhava muitíssimo à imagem do satanás.
***
Completavam dezesseis dias de internamento. Primeiro, era uma tosse que não parava. Diagnosticou-se bronquite. Depois, havia a possibilidade de os alimentos ingeridos pelo neto estarem indo para os pulmões, em vez de para o estômago. Mas tanto tardava o exame que comprovaria ou não!
Morreu de loucura. Aquilo calou fundo em mim. Eu bem sabia dos seus distúrbios mentais, sei, sei que se agravaram muito desde minha última visita. Soube da piora ascendente através de gente calada que fala muito, comenta tudo sem querer dizer nada. Mas não achei que ele fosse morrer, claro, a gente nunca espera isso do outro: a morte. A gente diz, a cada dia, com todas as faces do corpo, que espera vida daquele ser, não sei, que é natural que ele esteja ali sempre, um dia após o outro, como o jasmineiro do quintal. Mas pessoas não são jasmins, enlouquecem e também morrem antes de.
Antes de dizer tudo o que tinha de ser dito, que era tanta coisa, tanta, ele morreu. Tive de ir até lá, fiquei olhando o corpo dele, tive um pouco de nojo, mas pensei que é como ter nojo de tocar um pano de chão que tem nele a sujeira cotidiana do próprio chão em que se senta, deita e esfrega, então, abracei o corpo gelado, falei algumas bobagens, resmunguei alguma sobra de sentimento viscoso, bobagens, sim, nada foi ouvido por ele que estava lá seco, parado, morto de loucura. O rosto era o mesmo rosto rebelde que ficara dentro da minha cabeça por muito tempo, me chocou vê-lo um pouco envelhecido, mas a cara rebelde era a mesma... A loucura jovem e branca também estava lá, e bem no fundo dos olhos quase trincados havia a mocidade que, um dia, espalhou-se toda em mim, quebrando portas e janelas e tudo o que me era vidro.
E eu lembrei da infância, da castanheira, das noites de escoteiro no quintal, da respiração ofegante escondendo andorinha nas mãos, da juventude, dos bares sujos e das garrafas de cerveja, do dedo indicador de anjo mergulhado no Dry Martini, rodopiando a azeitona que era peixe verde.
Saí de lá e fiquei algum tempo olhando bem de frente o cubículo ainda em cimento, uma parte quadrada pintada de branco, inacabada, o portão descascado e cheio de ferrugem, a rua escura. É enlouquecedor o zumbido do silêncio.
Antes do choro desalmado no meio da cama dentro na noite nua, esmigalhei um último cigarro contra a parede, e os pedacinhos de fogo se estilhaçando no ar lembraram miudezas de estrelinhas muito quentes na crueza da noite.
Helena
Sempre odiei aquela merda nele, fosse qual fosse o nome que lhe apreciasse dar a ela. Imagino que ele gostasse de chamar de sinceridade, coragem, autenticidade, sobriedade, masculinidade ou qualquer coisa do gênero. Grandessíssimo macho alfa, cheio de opiniões sobre tudo, sempre embasadas por uma irremediável racionalidade; argumentos profundos para tratar de coisas complexas, afinal, nada-é-tão-simplório, ha-ha. Às vezes eu fico lembrando de como a vida simplesmente não me convidava a enfrentá-lo, a debater o que fosse com ele; vinha logo uma estafa mental que me invadia até os ossos, uma vontade de morrer, uma vontade realmente inexorável de vê-lo falando sozinho como se tentasse convencer a humanidade, não sei por quê. Não posso deixar de pensar que seria muito engraçado se, qualquer dia daqueles, eu tivesse dito: você é um perfeito babaca. Seus termos trabalhadíssimos ecoando pela casa e eu diria: olhe sua cara de idiota. “Se você me dissesse tal coisa, tudo bem, mas não admito ouvir coisa xis.” Vá pro inferno. Sabe que depois dele fiquei com certo pânico de sociedade? Levei uns meses pra conseguir sair à rua e para me comunicar normalmente, falo de trivialidades com estranhos.
Falemos como adultos, não tem nenhuma criança aqui. Isso tudo não é mais que despeito, puro despeito da minha parte – e me custa algo reconhecê-lo. Sem dúvida, havia a inflamação verbal maldita, mas o que me incomoda é – sempre – a vergonha presente no outro. Nenhum homem nunca, nunca quis me levar a sério, beijar em público, dar as mãos, apresentar pros amigos, confabular sobre qualquer plano a dois, mesmo que de mentira. Não é que eu precise disso, mas é curioso que nunca exista. Digo, parece ebó. Não sou vulgar. Às vezes acho que sou muito magra e pouco feminina. Quer dizer, sempre usei cabelo curto, assim, na altura do queixo, e minha voz é meio grossa, meio máscula. Mas gosto de pau. E também tenho minhas convicções e particularidades que me fazem especial; gosto de Neruda, por exemplo. Uma mulher que simpatize o mínimo com Neruda deve ser, no mínimo, interessante. Não, não é que seja exatamente assim; digo que é alguém a quem se possa apresentar aos amigos sem grandes preocupações, pelo menos.
imagem: Sarolta Bán
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Ludmila Rodrigues nasceu em 21 de janeiro de 1991, em Salvador, na Bahia. Em 2009, teve a primeira experiência com o livro prensado: participou da antologia baiana “Poesia & Conto para todos os cantos”, tendo dez páginas de contos publicados. Depois de morar em São Paulo e no sul da Patagônia argentina (Villa La Angostura), regressou a Salvador e, em 2012, publicou seu primeiro livro, “O rosto na xícara” — que abrange poesia e prosa poética — cuja orelha foi escrita pela consagrada escritora e componente da Academia Baiana de Letras Gláucia Lemos, lançado em maio, participando da programação de aniversário da Biblioteca Pública da Bahia. Entre idas e vindas, teve seu trabalho publicado em diversas revistas virtuais e impressas. Já planeja a publicação de “Minha cabeça já não comporta tantos antigamentes”, o próximo livro — que contempla apenas o gênero poesia. Atualmente, Ludmila vive em sua cidade natal, cursa Letras Vernáculas na Universidade Federal da Bahia e é também colaboradora da Revista Escrita (PR) e das agendas anuais Livro da Tribo (SP). Blog.