― Triste de Mim, que vim de Alma pra rua,
E nunca a poderei deixar em casa...
Mário de Sá-Carneiro
Saio para caminhar, gosto da sensação provocada pelo encontro do calor que há dentro de mim e o sopro do vento, eclode na pele uma constelação de poros, tento tocar o sentir que há nas coisas, olhando ultrapasso o eu, sou tudo que observo, muitos ignoram o carinho do meu gesto, outros confundem com flerte, o que me faz lembrar uma amiga que sempre me diz que somos todos carentes.
Observo e imagino um infinito plano-sequência de um filme sem diretor, escorrem gotas de suor em minhas costas, entre minhas pernas, me pertenço dentro deste momento, paro.
Sento num banco, embaixo de uma árvore, a sombra me afaga, bebo um gole de água, como se eu fosse toda sede que existe, um recipiente que anseia pela completude, e não percebe as pequenas rachaduras que o impedem de transbordar, mantendo umedecida a vontade, o que é pior do que se esta fosse seca, é o eterno estado de quase.
Em meu olhar surgem uma mãe e um filho, o menino chora e a mãe o acalma dizendo que seu amigo Zeca vai voltar, ela me descobre, percebe meu interesse, abre a boca sem que o som saia, eu leio as palavras que ela diz em silêncio ― O amiguinho mudou pra outra cidade ― Sinto vontade de me unir ao choro do pequeno, eu o invejo tanto, me sintofria, sem saudade de ninguém, sempre tive medo da felicidade, ela nunca me pareceu possível para a nossa espécie, como um homem que esteve com Deus e não pode olhá-lo, porque ele era uma luz impossível de ser suportada por olhos humanos.
Recupero o fôlego, caminho num ritmo mais lento do que quando saí de casa, há algumas pessoas esperando pelo ônibus no ponto, imagino o que cada uma delas pensa e sente, como se seus rostos e expressões fossem janelas de casinhas em um vilarejo e eu a forasteira curiosa, que imagina o que acontece ali dentro. Olho para o chão e me assusto, estou pisando num resto de rato morto, me arrepio. Onde houve vida, agora só há uma coisa que se parece com tecido, uma massa, não sei explicar.
Minha avó nos obrigava a lavar os pés, quando voltávamos do cemitério, ela não queria o pó da morte dançando no piso de sua casa, quando ela morreu, eu não lavei os pés para entrar onde moro, não varri o chão por uma semana, para que a poeira se sentisse uma hóspede desejada, habitasse cada fresta do possível, afugentando assim a ideia de fim para longe, abrindo espaço para o fluxo contínuo das coisas, preso dentro do triste planeta azul.
Sigo, quero voltar para casa, na rua me sinto nua, com pouca pele estendida pelo corpo, invadida, sem direito ao mínimo da singularidade. Espero o verde do semáforo, atrás de mim, há uma banca de camelô vendendo spinners, os carros passam, todos parecem um só e têm como função impedir a minha travessia, uma mulher íntima da vendedora ambulante, pergunta pelo bebê, eu nunca vi um criança na banca, passo por aqui quase todos os dias, a mulher diz que perdeu, a outra sem graça se cala, se despede e segue, a que ficou tem os olhos vazios e os lábios cerrados.
O porteiro me recebe com uma cordialidade domesticada, me chama de senhora, na minha cabeça ainda sou moça... Hoje o silêncio do elevador é só meu!É desconfortável dividir este tipo de intimidade com estranhos.
Não tranquei a porta ao sair, apenas a encostei para não desobedecer às normas do condomínio, embora existam nas gavetas notas fiscais que comprovam a compra legal do que há aqui dentro, sinto que nada me pertença, nunca quis fazer partedeste tipo de querer, um quebra cabeça infinito.
O espelho, por meio dele eu vejo fios brancos assanhados em minha cabeça, finjo um sorriso e nele algumas marcas de expressão me mostram que o tempo passa de pressa, tiro a camiseta, sento no chão, olho mais uma vez para o meu reflexo, desvio o olhar, me concentro nos cadarços, tiro a bermuda, a calcinha, sinto meu cheiro, corto minha idade ao meio, no final da primeira metade está Nilson, com suas mãos de estudante de violão clássico, meu corpo curioso, ansioso por seu toque, sua língua, seu sexo, depois dali senti que o cheiro que há em mim, me conta histórias do que vivi.
Ainda há tempo para um banho, este hábito deve ter sido propagado por alguém que queria apagar suas histórias, suas memórias e culpas. A gente fica nova depois de uma ducha, vou descer e esperar pelas crianças que estão voltando do final de semana com o pai.
Fernando Rocha é paulistano, nascido em 1981, graduado em Letras, professor de Língua Inglesa na rede municipal de São Paulo. Fotógrafo amador, autor do livro de contos Sujeito sem verbo (Confraria do vento) e da novela Oslaços da fita (Penalux), Possui um conto na coletânea Descontos de fadas (Alink editora). Colabora com as páginas Letras inacabadas e Letras et cetera. Tem textos publicados nas páginas Musa rara, Cronópios, Jornal O Relevo, Meleca-chiclete.