Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

O ÚLTIMO SEGREDO - RINALDO DE FERNANDES

$
0
0
Ilustração:  Veronica Tumova



para Rogério Pereira

A mulher passa pelas pessoas, atropela-as, pede passagem, corre, cruza o sinal, atravessa a praça, investe contra o grupo ali arrodeando o rapaz caído, o rapaz sujo e sem camisa, o corpo cortado de rajadas, a mãe, o vestido frouxo, uma só sandália, despenca sobre o corpo, apanha-lhe o rosto, beija-o muito, as lágrimas pendem, grudam-se aos cabelos do rapaz, ela grita, Joca, meu pai do céu, e beija-lhe a orelha, o sangue escorre pelo calçadão, ensopa o canteiro da amendoeiraao lado, meu filho, não faz isto, Joca, as pessoas olham, encostam-se mais, os rostos postos nas janelas do ônibus, um carro de som anuncia uma promoção de tesouras no beco, já pisca o luminoso do colégio, aí era um peste de ruim, diz um velho coçando o queixo pra uma comerciária ao seu lado, era traficante e dizem que estuprou três tias, a mãe debruçada sobre o corpo canta-lhe uma cantiga engrolada, o menino ri, a comerciária tira o espelhinho da bolsa, aperta o dedo na ruga da testa, o barro grudado nas pernas do morto desprende-se, a mãe canta mais, cheira a mão do filho, cheira-lhe os olhos, chega mais um carro da polícia, as pessoas se afastam aos tropeços, a mãe fala ao ouvido do morto, diz-lhe um segredo que faz o sargento, a arma na mão grossa, se baixar pra tentar ouvir, a mãe tosse, afunda os dedos nos cabelos duros do rapaz, não vai, não faz, filho, ô desgraça, meu Deus, baba o ombro do morto, cola o rosto no rosto dele, a mão apoiando-se no cimento com tocos de cigarro, os dedos empapando-se no sangue, a mãe chama baixo o nome, Joca, Joca, um flash espoca, o vestido quase que veste o morto, o soldado rosna pro grupo se afastar, espanta o menino, a mulher volta a tocar a boca na orelha do filho, o sargento talvez queira o segredo, porque volta a se baixar, os músculos do braço tremendo, mas só as formigas, ali pelos capins nas rachaduras do cimento, devem ouvir algo, só as formigas já passando nos pés do morto, e novamente o grito da mulher rompe, foge pra bater nos rochedos, na madeira tosca das portas dos barracos na barreira ali perto, a mãe fala ainda uma vez ao ouvido do morto, enquanto o carro de som grita grita grita bem alto que é pro sargento, agora acocorado junto ao cadáver, não saber não escutar jamais aquele último segredo.




Rinaldo de Fernandesé contista, romancista e ensaísta. É autor do romance Rita no Pomar, que foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2009. Considerado um “Mestre do conto” pela ensaísta e professora Regina Zilberman, está lançando pela editora Garamond (RJ), em março de 2018, o livro Contos do Brasil, que reúne os seus 34 melhores contos. O texto acima integra o Contos do Brasil. 

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548