Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Potro - Leonardo Paiva

$
0
0

Ilustração: devaintART


O filósofo para na entrada do condomínio e suspira. Aiôn é, sem dúvida, uma criança a brincar com as peças de um tabuleiro, ele pensa. O potro surgiu do nada naquela curva, como se tivesse brotado do asfalto. Se não conseguisse dominar o volante, atropelaria o potro e perderia o controle do carro, que bateria em cheio numa das árvores que margeiam a rodovia. Se sobrevivesse,cobrariam explicações, perguntariam o que nosso grande filósofo pop (pois assim o chamaram mês passado naquela famosa roda de entrevista, e o adjetivo passou a lhe cair bem), o que ele estava fazendo com um — no carro em direção ao seu condomínio. Porque desta vez o velho juiz pediu um —, ele pensa, um — imundo. Que aquele maldito potro seja atropelado, pragueja o filósofo, e o imenso portão começa a correr nos trilhos.
Entra na garagem do asséptico sobrado minimalista e diz para o — não se levantar. Desce do carro, confere se na rua não há um vigilante ou um daqueles vizinhos fitness correndo pelo quarteirão. O — sai coberto com a jaqueta jeans,eles entram pelos fundos, atravessam a cozinha branca. Na sala se deparam com o velho juiz sentado no sofá de couro assistindo a (quem diria) um canal estrangeiro dedicado exclusivamente à caça.
O — o cumprimenta, o velho juiz o convida para sentar-se. Um português de voz impostada anuncia a volta da Emocionante caça ao veado com arco. O — se senta, deita a jaqueta no braço do sofá. No programa um homem loiro almoça com outros homens loiros, mostra para a câmera imensas cabeças de animais chifrudos penduradas na parede, diz que hoje os espectadores o acompanharão numa caçada inesquecível. O — pergunta em que língua eles, apresentador e caçador, estão falando.O velho juiz diz que os dubladores falam o português de Portugal. O — diz que o português é uma língua engraçada, parece o brasileiro, mas ele não consegue compreendê-los muito bem. O velho juiz diz para ele não se preocupar,as imagens importam mais do que as palavras. Os preparativos para a caçada começam. O — diz que acha foda ver um programa como este numa tela tão grande. Elepergunta se o homem está caçando de verdade. O velho juiz diz que sim, é tudo verdade: ele também é um caçador e sabe que o camuflado não está ali para brincadeira.
O velho juiz pergunta se ele quer uma dose de uísque. O — vidrado diz que sim, uísque puro. O velho juiz pede para o filósofo trazer dois daqueles comprimidos e preparar um caubói e o seu especial. Com os copos em mãos, o falso caçador não consegue controlar o clink clink clink tumultuoso das três pedras de gelo que balançam no raso líquido amarelo.
O filósofo se senta em uma poltrona não muito distante à direita do sofá com o seu gin tônica. O verdadeiro caçador arranha a casca de uma árvore com dois chifres, depois bate um contra o outro para atrair um veado robusto que vive nos campos de Ohio. O — diz que ele é inteligente, sabe atrair muito bem o animal. O velho juiz diz que sim, as suas técnicas são incríveis. O — beberica o uísque e não desgruda os olhos da televisão.O veado leva a primeira flechada nas costas e escapa em disparada. O — faz um barulho com boca, diz que agora o veado está ferrado. O apresentador anuncia os comerciais, rápidos anúncios de venda de armas, roupas e acessórios para caçadores. O velho juiz bebe o resto da água com uísque e diz que caçar é mesmo uma arte. Lança-se afoito sobre o —, desliza a mão frouxa e trêmula pela sua coxa, murmura alguma coisa no seu ouvido. O — deixa o copo na mesa de centro e dá a mão para o corpo seco se erguer do sofá. Sobem lentamente a escada, degrau por degrau, arrastam-se pelo corredor e entram no quarto.O veado é, enfim, mortalmente flechado, e cai sobre as folhas secas do outono norte-americano.
O filósofo desliga a televisão e espera o velho juiz se refestelar. Prepara um prato de espaguete com molho de tomate importado e manjericão fresco e suga os fios enquanto os gemidinhos decrépitos vão martelando as paredes do sobrado. O prazer é mesmo um mistério, pensa o filósofo. Imagina o velho juiz de quatro no ato, todo duro, o — satisfazendo aquele corpo embalsamado. Termina de comer, pensa em organizar as notas filosóficas sobre a mediocridade e a covardia do homem contemporâneo, base de sua palestra a ser ministrada no Encontro Filosófico. Mas como precisa levar o — de volta à Praça da Liberdade, adia o trabalho para o fim de semana.
Apanha O Jornal, lê algumas notícias enfadonhas e o caderno de cultura. Na entrevista com o historiador não há nada que preste. A comparação dos ricos condôminos a vermes encastelados que se deleitam nas feridas do velho cavaloé ridícula.Na coluna do dia o sociólogo continua a sustentar que os neoliberais (oh! sempre eles!) criaram e alimentam esse engodo chamado Estado do mal-estar social. Vai para o escritório e anota algumas ideias para responder a tais disparates na sua próxima coluna.
De repente o silêncio cai como um lençol amarfanhado sobre o sobrado. A porta do quarto se abre, o — desce as escadas, diz que terminou o serviço. Até que enfim, pensa o filósofo. Pede para o —cobrir a cabeça suada com a jaqueta. O filósofo sai de casa, abre a porta traseira do carro, volta, diz para ele o seguir.
Alcança a rodovia e diz que o — já pode se levantar. O — diz que nunca recebeu tanto dinheiro em toda a sua vida. O filósofo diz que o cliente era sempre muito generoso. A certa altura, o potro que ele quase atropelou surge estirado no meio da pista. Alguém cumpriu o meu desejo, ele pensa. Para no acostamento para contemplar o acidente que teve, a princípio, apenas esta vítima. O — diz que pelo estado do corpo deve ter sido um veículo grande, uma caminhonete ou um caminhão. O filósofo o vê pelo retrovisor e diz que não poderá ser tão generoso quanto o cliente, que pagará conforme havia combinado. O — diz que depois dessa bolada o que viesse era lucro.
Entra na estrada de terra, mete o carro na velha clareira, desliga o motor e desliza excitado para o banco de trás.
Pede para o — guardar a sua porcaria, bota a mão no bolso e tira do canto da carteira uma parte irrisória do valor combinado. O — pega o dinheiro sem reclamar. O filósofo não consegue conter a ofensa, diz que o — não cumpriu a sua função, que ele queria mais do que isso.O — se desculpa, diz que espera não ter problemas com os homens. O motorista dá a partida e desova o —na Praça da Liberdade.
Parado na entrada do condomínio, o filósofo não suspira. Nos pneus de seu carro há sangue, merda e carne de um potro, morte alheia espezinhada que recheia as suas ranhuras.



Leonardo Paiva nasceu em Pedralva (MG) e atualmente vive em Campinas (SP). Em 2016 publicou o livro de contos O mar não sofre coisa morta (Editora Moinhos).

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548