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Caio Augusto Leite resenha um poema de Matheus Guménin Barreto

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S. Xing e X-J. Wu

Um poema rompe o branco
Em dado momento de seu Água viva, Clarice Lispector escreve “Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”. A temática, obviamente, não é nova, Mallarmé já radicalizara ao usar a página em branco, esgotando – momentaneamente – a expressão. E falar de Mallarmé aqui é plenamente justificável ao lembrarmos que o poema em questão surge, no livro, depois de uma sequência de páginas também em branco.
Que poema, agora se perguntam os leitores flagrando uma falha nessa tentativa de crítica. É que o próprio texto permite que o crítico jogue com a expressão, usando das mesmas armas para tentar dar conta do que o poema anuncia como eterna insuficiência. É que nunca é possível falar da coisa sem ser abrupto, pois é também assim – abruptamente – que começa o poema “: “e surpreender-se/de/falar”. O uso da conjunção aditiva “e” em letra minúscula promove uma sensação de estranhamento, como se o discurso já estivesse em andamento. Ao olharmos para o livro, veremos que este “e” se conecta com o branco da página ao lado, como se a fala antes em potência (adiada pelas páginas vazias) quebrasse de repente o silêncio insuportável no qual o poeta se instalara.
E o poeta fala, mesmo sabendo que “a gar-/ganta/já se/ intui/ inútil”. E essa fala é ao mesmo tempo voz e silêncio contido, pois através do corpo da palavra que diz é que o poeta também a sufoca ao cortar, simbolicamente, a própria garganta ao meio “gar-/ganta”.
Só agora entra a tópica clariciana apontada no início: “quem quem quem/ Deus/ quem tem coragem de/ de abrir/ a boca/ para ouvir outra coisa que o silêncio/ para ouvir coisa que/ o silêncio diz/ melhor”. Aqui – e nas seguintes estrofes que contêm a palavra “quem” – instaura-se uma ambiguidade, uma vez que se usa a estrutura interrogativa sem no entanto empregar o ponto de interrogação, tornando essas frases ao mesmo tempo perguntas (intuitivamente) e afirmações (textualmente). A frase pergunta “quem tem coragem[?]” e a frase a si mesma se responde “quem tem coragem” retomando outra passagem de Lispector (de A paixão segundo G.H.): “a explicação de um enigma é a repetição do enigma. O que És? e a resposta é: És”. Ou ainda biblicamente: “quem, Deus?” em “Quem? Deus” – “Eu sou o que sou” responde o Criador a Moisés, não constituindo um pleonasmo e sim uma transformação do verbo “ser” em ação, sendo Deus aquele que continuamente é. O poema é aquele que continuamente permanece sendo o que é: ao mesmo tempo enigma e solução.
E quem tem coragem é este mesmo que pergunta, o próprio poema que rompeu o branco e que – mesmo sabendo de sua deficiência – insiste em dizer. Não dizendo como uma pessoa fala com outra, pois o poema sabe que o discurso “não há onde se assente/ no ouvido do outro” e por saber disso é que a poesia – enquanto função da linguagem – não almeja dizer algo, mas ser algo. Mas até este “ser” é utópico: “a fala morre/ antes de/ passar/ do porto/ da língua”. Logo, até o poema, que é uma construção artificial, naufraga na busca de ser objeto puro, pois mesmo essa leitura que faço é uma variação daquele sentido íntimo que perpassou a ideia do poeta antes de ele escrevê-la. Palavra escrita, palavra perdida.
Pois é sina da palavra exaurir-se. Esta que é, talvez, a mais humana das invenções, é apenas um traço curto na linha do tempo da existência do Universo. Há muito “antes” sem palavras e muito “depois” que será sem elas. Por isso cada discurso – e mais ainda o artístico, que tem consciência de si – é a encenação de uma quase-tragédia; nesse sentido um poema faria o papel de protagonista e coro, pois avisa acerca do fim de si mesmo. Quase-tragédia, pois ainda há palavras, como esse poema, como esta análise, como o bom-dia que daremos amanhã (daremos?) ao vizinho, que têm força para perfurar o silêncio. Mas o poema não se esquece de que “sua única voz/ verdadeira/ é quando cala”. O poema termina e uma página em branco se derrama até que a viremos e, aliviados, encontramos outras palavras para nos salvar do nada.
Importante lembrar, também, que é o homem, como diz o título desse livro de Matheus Guménin Barreto, uma “máquina de carregar nadas” – e que por mais que usemos palavras para enfeitá-los, escondê-los, eles (os nadas) permanecem em nós mesmo quando já perdemos tudo, inclusive as palavras.
Caio Augusto Leite*
1 de outubro de 2017, São Paulo


*Caio Augusto Leite nasceu em São Paulo em 1993. Cursa pós-graduação na Universidade de São Paulo (USP) no programa de Literatura Brasileira, onde estuda a obra de Clarice Lispector. Publicou em 2017 o livro de contos A repetição dos pães (7Letras).


O poema de Matheus Guménin Barreto (BARRETO, 2017, p. 83-85), autor deste A máquina de carregar nadas(7Letras, 2017).


Dedicado a Wlademir Dias-Pinto
e surpreender-se
de
falar


se a gar-
ganta
já se
intui
inútil


quem quem quem
Deus
quem tem coragem de
de abrir
a boca
para ouvir outra coisa que o silêncio
para ouvir coisa que
o silêncio diz
[melhor


quem tem coragem
de
falar
sabendo sabendo
que a fala morre
antes de
passar
do porto
da língua


quem pode quem se lança a
quem tem coragem
de
falar


sabendo que a fala
resvala
e cai na quina do quarto
sem som


quem quem quem
quem
tem coragem de falar
e de ouvir o que
diz


quem então tem coragem
de
falar
quando vê, sabe, escuta
pressente
que o que se sente
não há onde se assente
no ouvido do outro


quem tem
coragem
de
falar


quando a fala
sabe
que sua única voz
verdadeira

é quando cala  

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