Ele tira o chapéu
antes de entrar na minha casa
Tira os sapatos
antes de entrar no meu quarto
E veste-se de mim, de noite
Para cavalgarcavalgarcavalgar
cavalgarcavalgarcavalgar
***
Sem reinos nem vestes de sonhos.
Afagam a minha noite nua.
Como em um íntimo ensaio, vestem-me de Ilha.
Desfolho primaveras.
A mãe do sol
em um tímido passo, abre-me a janela.
Por não saber da asa – o medo.
E ao querer do vinho, bebo
esse homem de águas
com pedras por dentro.
TEMPO-MEMÓRIA
Passaram-se meses
cresceram os musgos
as crianças cresceram
teus cabelos cresceram
alguns, naturalmente, devem ter caído
por entre as selvas
os barcos, as velas, os rios
dos teus mares distantes.
Muitos meses se passaram
e na foto, também distante,
teus cabelos cresceram
alguns fios ficaram perdidos
pelo Rio Sena, pela Amazônia
alguns dos teus fios negros
pela neve da Patagônia.
Alguns fios da tua lembrança
E também, agora, nessa praia distante
devem ter ficado
uns fios de ti.
- Quando, quando terei entre meus dedos
teus primeiros fios brancos?
PRIMEIRO PASSO
Caminhei, caminhei, caminhei
mudei os móveis de lugar
sem pedir conselhos
eu mesma cortei
unhas e cabelos
e as cortinas
eu mesma pintei
a casa de branco
e as unhas de vermelho
tudo para afogar
tuas iniciais
nos meus lençóis tão brancos
tuas iniciais
sibilantes e serpentinas
no meu sacrossanto
peito.
E perdoei.
FLORES RARAS
Sim, preciso voltar e rever
Aquele quarto vazio
À luz da lua de Bishop
À luz da lua de Lota.
Sim, preciso voltar e rever
As estrelas cadentes
Dos teus cabelos prateados
As flores raras, o sol mais dourado.
Sim, preciso voltar e rever
O teu país longínquo demais para mim
Voltar a morrer nos teus braços transatlânticos
Teus braços.
AOS DEUSES, EU IMPLORO
Se alguém te ofertasse amor assim
amores cristais
Ó, Dionísio
pedir tua amizade
seria demais?
Se te ofertassem amor assim
amoresamores
mares de amores
de mares de flores
de sargaços e praias
de veleiros de cores
Ó, Deus dos mares
pedir tua amizade
seria demais?
Se alguém te ofertasse amoramor
da língua dos Deuses
das asas dos anjos
do subitamente belo
Ó, Afrodite, seria demais?
Se alguém te ofertasse
os braços e os beijos
os doces mais doces
a pele e o colo
Ó, Eros, doce Eros
pedir tua amizade
seria demais?
CANÇÃO DA INVEJA
Para Iracema Macedo
Invejo os versos perfeitos
as vozes dos loucos.
Os quartos bem arrumados,
também invejo.
Invejo os que têm fome
E os que não têm fome.
As prostitutas e os doutores de branco
nos seus consultórios fechados,
ainda invejo.
Dei para ter inveja
dos próprios invejosos
assimilando seus desejos
para não morrer de inveja.
Mas, quando a noite vem,
e a minha amiga, a minha amante,
me abraça, de leve,
eu não invejo mais nada.
Poemas de "Infinito sobre o peito" (Penalux).
Ilustrações:Rafal Olbinski.
Ana P. Oliviernasceu em Natal (RN) em 1971 e está radicada em São Paulo (SP) há dezesseis anos. É mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC (SP). Também é atriz e escritora, com diversas prêmios literários e participação em antologias poéticas publicadas no Brasil. Atualmente é professora de ensino superior e doutoranda em Ciências Sociais pela PUC (SP).Infinito sobre o peitoé o seu primeiro livro de poesia.