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Um conto de "Diário das coincidências" de João Anzanello Carrascoza

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Círculo


Alguém lhe disse, anos atrás, vivemos num círculo, não se pode ajudar a quem nos ajudou. Jovem, não compreendeu de imediato a sentença, mas, depois, refletindo sobre ela, constatou que, numa roda, uma pessoa sempre nos antecede e nos estende a mão, estando, pois, atrás de nós; outra estará à nossa frente e para ela é que ergueremos a mão, pedindo auxílio.
Talvez, por isso, ele pensou, exista tanta gente a se queixar de ingratidão: haviam sido amparos para outros e deles exigiam contrapartida, quando, em harmonia com aquela lógica, qualquer ação, recíproca, era impossível. A não ser que a roda da fortuna começasse a girar ao contrário. Mas a roda nunca se engana, a roda vai adiante, como o tempo — falso é o seu vaivém —, o tempo agencia o fim, sempre se deseja morrer amanhã (não hoje).
Em resumo, seria esse o mecanismo: eu te dou o óbolo e você não se preocupa em me devolver; alguém, adiante, fará o mesmo por mim; a este, lhe fará um outro; e, assim, a corrente segue a girar, podendo ser também (por que não?) de ações venais.
A ideia o perseguiu por décadas e, embora a julgasse simples e justa, nunca acreditou que poderia reger, de fato, as relações humanas. Escreveu inclusive uma história sobre amigos ingratos — título de seu livro Meu amigo João.
Então, foi para uma residência de escritores na Suíça. Lá, finalizou uma obra que estava a meio caminho e fez as primeiras anotações (tanto tempo esquecidas) que resultariam nas histórias deste livro. Tão rica foi a experiência no Le Château de Lavigny, que ele demorou a se sentir pronto para narrá-la.
No entanto, um fato, entre dezenas que o afetaram lá, ecoaria inesperadamente em sua vida anos depois: no último dia da residência, antes de partir, pediram-lhe para deixar uma mensagem no livro de presença. Folheou-o a fim de ler o que os escritores das sessões anteriores tinham escrito. Chamou-lhe a atenção as linhas de uma romancista indiana que agradecia, de forma contundente, a um brasileiro, pelo carinho e pela solidariedade que ele lhe prestara durante a estada de ambos ali. De súbito, ele se lembrou da frase: vivemos num círculo, não se pode ajudar a quem nos ajudou.
            Três anos se passaram e, dessa vez, ele foi à Sangam House, na Índia, para outra residência literária. Passou lá por muitas vicissitudes, algumas debilitaram a sua saúde, obrigando-o a procurar socorro médico em Bangalore, há quarenta quilômetros. Afortunadamente, uma escritora indiana, que lá estava, ajudou-o a superá-las. Foi, pode-se dizer, uma aliada, que não só se tornou o seu lenitivo, como o salvou de muitos apuros.
            Mas, ainda que tivessem se tornado amigos, só no último dia conversaram sobre suas experiências em outras residências literárias. Foi quando ele se lembrou da mensagem de gratidão, deixada por aquela romancista a um brasileiro no Le Château de Lavigny. Então, movido pelo mesmo sentimento, comentou o fato com a escritora indiana, fazendo, em seguida, um sincero agradecimento à ela pela ajuda que lhe dera. E só aí ele descobriu que ambas eram a mesma pessoa.        
            Quem será que, na próxima ciranda, aguarda a minha mão?, ele se pergunta.


Conto de "Diário das coincidências" finalista do Prêmio jabuti 2017 na categoria Crônicas /Contos.
Foto do autor: Daniel Mordzonski.



João Anzanello Carrascoza é escritor, publicitário e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado e doutorado, e da Escola Superior de Propaganda e Marketing-SP, com pós-doutorado na Universidade Federal no Rio de Janeiro sobre a interface publicidade e literatura. Publicou os romances que compõem a Trilogia do adeus e várias coletâneas de contos, entre as quais O volume do silêncio Aquela água toda. É também autor de histórias o público infantojuvenil e obras didáticas sobre a criatividade na propaganda, como Razão e sensibilidade no texto publicitário e Estratégias criativas da publicidade. Recebeu os prêmios Jabuti (CBL), Fundação Biblioteca Nacional (FBN), Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e os internacionais Radio France (RFI) e White Ravens (Library Munich).

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