/por Krishnamurti Góes dos Anjos/
A palavra “Mecânica” nos remete ao estudo da Física, pois trata da concepção e do funcionamento das máquinas, já a Mecânica Aplicada estuda o comportamento de sistemas (como os de equilíbrio ou movimento dos corpos) submetidos à ação de uma ou mais forças. Eis uma definição para a nossa percepção material. Em literatura a ideia de Máquina do Mundo não é nova: refere-se resumidamente ao sistema cósmico do mundo, ao modo como ele funciona e a tudo o que ele rege e congrega.
O tempo passa e com ele as transformações histórico-sociais que evidentemente impactam nas sensibilidades porque se a criação artística constitui-se por um lado em um ato subjetivo e individualizado, por outro, não há como negar que um autor nascido em determinada época e local, terá sempre uma “formação intelecto-criativa” e ideológico-social específica condizente com a conjuntura sócio-cultural em que se insere. Foi assim, e sob tais perspectivas, que surgiram dentre outras, obras como a Divina Comédia, de Dante, Os Lusíadas de Camões, A Máquina do Mundo de Drummond e a Máquina do Mundo Repensada de Haroldo de Campos.
Dante Alighieri (1265-1321) com sua máquina a revelar a linha ascensional que leva ao Paraíso e Luís Vaz de Camões(1524-1579/80) adotando a concepção de Ptolomeu, segundo a qual a Terra está localizada no centro do sistema solar, conceberam suas cosmogonias (que explicam o princípio do universo), a partir do conceito de “Maquina do Mundo” correspondentes ao Medieval e o Renascentista. Modernamente Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Haroldo de Campos (1929-2003) se notabilizaram ao escrever obras de referência sobre o tema.
Haroldo de Campos, no poema épico pós-utópico trata da própria descoberta do todo e de si mesmo, transcendente e para dentro, revendo tudo o que se sabe e o que pode ser descoberto. Assim, a “Máquina do Mundo sou eu mesmo”. É na relação entre o eu e o não eu que habita o nexo. “Drummond inverte os pólos ideológicos dos textos anteriores ao seu, para renunciar de forma decisiva ao peso de séculos de tradição sobre o tema, afastando a visão ligada ao transcendental de Dante e de Camões, e também a do homem senhor da natureza e conquistador do universo de Descartes. Em Drummond, e veja-se bem isto, o homem já se cansou até de pensar e não está mais aberto a utopias.
Toda essa explanação, ou, no dizer do tempo que corre, esse “textão”, nos vem à mente a propósito de um pequeno livro de poemas com apenas 88 páginas. É “Mecânica aplicada” do arquiteto, professor e escritor carioca Nuno Rau. Esta notável obra é dividida nas seguintes partes: subversio machinae - 13 poemas, entreato: imago mundi– 7 poemas, fenomenologia dos materiais – 20 poemas, um novo entreato: opera mundi– 7 poemas, e finalmente, mecânica aplicada – com 7 sonetos, totalizando 54 poemas. O autor usa como epígrafe à sua obra trechos de Dante, Camões, Haroldo de campos e Drummond. E na orelha explica que a viabilidade da edição se corporificou “quando notei que a questão da máquina do mundo tinha se tornado, sem plano prévio, recorrente ou quase obsessiva” em seu fazer literário. Em relação às epígrafes que abrem o volume, esclarece que “escritas por grandes poetas, não pretendem nada além do que enfatizar, mais ainda, uma diferença – enquanto eles pensavam a máquina do mundo no seu todo, como ciência pura, aqui não se deseja mais do que arriscar uma mecânica aplicada, um aperto de parafusos mais visíveis, a regulagem das velas, a verificação do nível de água no sistema de refrigeração do motor”. Bastante oportuna a colocação, sobretudo porque, como sabemos, o deslocamento, a subversão são dados inerentes ao fazer artístico, mas especificamente ao fazer poético, e para que isso se processe, o diálogo com a tradição é condição absolutamente necessária, porque “apropriar-se de uma pluralidade de passados possíveis, presentifica-os como diferença” (Haroldo de Campos).
Mas a obra de Nuno Rau vai adiante; não mais a “inquietante estranheza” do poema de Drummond. O poeta se mostra como inventariante de um mundo em colapso. A expressão dominante é a de uma poética da catástrofe em que estamos. Fica a pergunta que não quer calar: Quem é o sujeito poético dessa obra? É justamente você leitor. Aquele que precisa ser sacudido, sub-ver-ti-do:
... “você erra pelos corredores do inferno e descobre / mais escadas, mais corredores e não sabe / se são vitrines ou quartos escuros / estas cavernas em que as meninas / exibem sua penugem de água / oxigenada e seus sorrisos / de propaganda enquanto você /se sente uma sombra deambulando / na galeria de luzes / feéricas e artificiais onde o real segue cifrado / em bits no sistema servidor / central, ligado / por cabos ao caixa, você / não tem nenhum trabalho pra descer / ao inferno, ele se abriu /”...Trecho do Poema “touch screen (retorno ao inferno interminável)”.
Exatamente, você, assim como o autor, como eu, como todos nós, que seguimos...
... “pelas galerias, boca / que lhe devora, sede / contínua de esfinge / cocainômana suportando o peso / da pureza / em suas narinas brancas enquanto / você olha de frente a crise / das metáforas, o rol / dos vilipêndios, a carne / do ato e a carne do sentido, os lugares / que agora são / restos da sua melhor / parte enquanto você”... Trecho do Poema “rede”.
Nuno Rau revela-se um poeta que olha para a matéria fecunda da vida como ela está aqui e agora. O seu fazer poético não é concebido só de inspiração, mas de conhecimento, de arte/artifício, se investe de veia crítica (como diria Gilberto de Mendonça Teles), sabe que a intuição é o momento inicial da criação, mas ela só vai adiante, só se completa se for prolongada, se for mantida a consciência - arte do processo criador. Assim, existe a “chama” e, em seguida, a continuidade do “fogo poético” que é alimentado pela retórica (pela arte), pelo domínio do “discurso verbal” para que ele deixe de ser puramente linguístico e se transforme em discurso poético. A cada página poemas que são fiéis traduções do nosso desencanto pós-utopico de homens solitários, sem guias espirituais, perdidos em meio às incertezas do nosso tempo, o tempo contingente do caos, lutando não mais contra feras reais, mas contra nossos próprios demônios através das árduas veredas da vida. Dentro da “máquina do mundo-cão”:
...“você se olha / no espelho quando tira a máscara / e vê o rosto igual / àquilo que o escondia / sem saber quem / deformou quem, dois / lados da moeda cunhados / na mesma forma banal, neste jogo / de azar você é o dado / viciado”. Trecho do Poema “touch pad”. E o que nos diz um outro poema?
“O ponto onde você dança é um ponto cego, na roda / do seu rodopio você lança um sorriso / para o mundo e ele devolve / um esgar, o mundo / tem a carne impressa com grafismos / ardentes que incineram / todos os planos quando os tocam, no ponto / onde você dança sua coreografia é a mesma / acupuntura masô com que você / dissimula imóvel as espirais / de seus pés cada vez / mais fundo na lama-glitter / do mundo.”. Poema “looping sufi”.
Na sociedade contemporânea, dominada pelo dinheiro e pela erotização desenfreada, as relações humanas caminham rumo ao aniquilamento. O atual estágio de evolução do sistema capitalista caracteriza-se por uma substituição das mercadorias, pelas imagens como mediadoras das relações humanas, e o espetáculo tornou-se a forma mais desenvolvida de relação entre as pessoas. Nos espaços sociais, os indivíduos confundem-se em multidões amorfas, sem rostos e sentimentos, incapazes de resistir às imposições e apelos do esquema da indústria cultural, que os reduz a consumidores de artefatos e imagens, incessantemente produzidos. Vejamos a severa crítica ao "progresso" tecnológico e à informatização do cotidiano, que trazem em si uma acentuada pobreza existencial, com a reificação do homem e a fossilização das relações humanas, e acabam por levar-nos a uma situação de tensão e desespero.
...“não se reconhece /na ideia da alma. As fachadas / mudaram de cor, os pântanos / aterrados, flores de concreto / e vidro brotaram da terra, mas / a paisagem permanece / imóvel, áspera [não tem negócio / meu chapa], mero / cenário. Enquanto isso, mercadorias / incandescentes inauguram / novos ritos em catedrais / do instante onde séquitos / depositam almas planas em suaves / prestações num jogo / de corpos imolados nas epopeias / controladas por relógios / de ponto, câmaras de captura / de vídeo e catracas biométricas, / à espera, sempre à espera / de uma rave / tão ácida que dissolva a cápsula / impermeável da alegria / para que ela penetre em todas / as rachaduras / dos muros do presente / e desapareça”. Trecho do poema “inútil paisagem imóvel”.
Mas é no suspiro do / entreato (intervalo entre dois atos consecutivos de uma representação), que se intitula: imago mundi. que encontramos esse poema revelador do profundo embaraço existencial em que estamos:
“nem música das esferas, nem pro- / digo canto de algum absoluto / romântico que com seu manto tudo / prende nas grades do sentido: só / o silêncio do mundo acompanhado / de um ruído de fundo que ensurdece, / ou mais, desvia qualquer um que quer se / manter a prumo, lúcido, no passo / certo rumo ao real, seja deserto, / horror ou o enorme peso do nada / se movendo na tela que embaça / o senso, iluminada, e com seu estrépito / anuncia a verdade num chiado / que se desprende do canal errado.” Poema “o silêncio do mundo”.
Silêncio constrangedor... eis aí o nosso primeiro entreato.
Um dos mais belos poemas do livro é uma elaborada imagem do desamparo, ao mesmo tempo cósmico e social, que nos atinge – no qual o poeta se põe, entre atônito e extasiado, a escutar a desconexão absoluta de/ todas as falas do mundo, de/todos os sonhos do mundo. “mecânica aplicada 2”.
“os nossos sonhos tinham um defeito / a mais do que no fundo a gente já / supunha, e tudo era mais que á- / cido, mais que cínico, mero efeito / de espelhos, chão que não existe, ar / viciado no labirinto estreito / das palavras abatidas em meio / ao voo porque deviam confessar / que os nossos sonhos tinham um problema / oculto em suas muitas engrenagens, / seus mil circuitos impressos, e nem / se disse que na verdade ninguém /viu o que incendiava as imagens,/ e implodia sonhos e poemas.
A cada página encontramos uma síntese concludente da cosmovisão do poeta, indo por partes ou por tentames que constituem os poemas isolados, ele vaiacrescentando-lhes as novas descobertas de sua sensibilidade e o aprimoramento paulatino daquilo que diligencia comunicar enquanto visão de mundo. Eis sua força motriz. Além disto, havemos de acrescentar, à guisa de demonstrar a versatilidade do autor, que ele logra ainda embaralhar cruzamentos intertextuais como ocorre no poema “zeitgeist, ou parapsicologia da composição” nos quais estão juntos Fernando Pessoa e Cartola ou “descartes-sampler”, inspirado numa carta de René Descartes.
“Você tem cinco ou seis maneiras de se perder / na cidade. Numa delas / o Livro dos Espíritos é um oráculo / tatuado em braile na pele / de meninas mestiças que dançam / nuas sobre lençol grená / um cântico sufi enquanto / o sentido arde em suas vísceras e seus pés / escrevem um livro chamado / motel nosso lar.”...
Trecho do poema “cinco ou seis maneiras de se perder na cidade”
Em “Zeitgeist, ou parapsicologia da composição”, vêm à luz do dia as entranhas emperradas e negativas de nosso mundo e tudo isso dá ao conjunto, ao todo orgânico da obra, a forma de um motor em tensão máxima, quase a explodir:
“o espírito do tempo eu nunca vi: / devo estar cego, ou andando desfocado, / se pra cavalo deste santo irado / não mostro vocação nem pedigree. / Não sei se escrito ou psicografado, / me dizem que ele anda por aí / disperso, esparso em tudo quanto li, / e eu procurando aqui, bem do meu lado. / Mas não me cabem passos nesta dança, / só a sensação de ter perdido o bonde / e visto as tais flores no ar [sem hastes], / quando, virando cabos e esperanças, / uma voz sussurrava não sei onde: / 'Ainda é cedo, amor, mal começaste...”. Tradução de “Zeitgeist”: termo alemão que significa espírito da época, espírito do tempo ou sinal dos tempos.
Entretanto, e apesar de tudo, há o convite ao resistir: “leia se puder / o que segue escrito na carne dos dias / são signos sobre signos sobre signos / soterrando os sentidos / mas leia /... Trecho do poema “manual técnico da dispersão”.
Os versos de “Mecânica Aplicada” abrigam a peculiaridade da linguagem poética e a visão reflexiva do autor, uma vez que a “imaginação”, graças à sua natureza compensadora, contém o espírito crítico a definir um poeta com a consciência de seus sentimentos e a precisão de exprimi-los. Beleza estética aliada a profundidade reflexiva. Poética da interferência, mecânica na máquina do “mundo-cão” (que bombardeou até a Passárgada de Manuel Bandeira!), a nos oferecer um novo ar, um novo fôlego reflexivo e melhor ainda, a força para continuar quando lemos o 15º verso do soneto “epílogo [moto perpétuo]”:
“infinito / motor que nasce em mim e recomeça / no verso quinze o um de um novo ciclo”...,... enquanto o mundo perfaz suas tantas revoluções na órbita celeste.
______________
Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos,Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.
ψ Catastrophe– latim. Na tragédia clássica, desfecho da ação trágica que corresponde ao acontecimento decisivo e culminante da tragédia e através do qual a ação se esclarece inteiramente, permitindo o restabelecimento do equilíbrio moral.