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A FALSA CHINESA: poema novo de Roberto Bozzetti

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Foi entre as fileiras de poltronas vazias num  renitente  poeira periférico
que aquele velho senhor de antigas maneiras e já  à beira da última morada,
enquanto aguardávamos um filme que jamais começava nem começaria,
me disse do que teria sido a sua última paixão –
a derradeira, ele frisava
e me cravava os olhos rútilos e inexpectantes: a derradeira: –:

Era como se fosse uma chinesa e eu a conheci em Damasco, era...
não não era chinesa, era
uma beleza coruscante a que de suas pernas se irradiava
que mesmo à sombra das mangueiras do baldio onde eu sonhava sua casa,  
sonhando-a  em sua casa, não arrefecia
e não apenas as pernas mas sobretudo os olhos
 – não, ela não era uma chinesa, nem exatamente era como se fosse –
me olhavam presas de  desejo e piedade
e me era receptiva e generosa apesar de  sua boca inacessível se bem que sorridente tanto que acabamos muito nos afeiçoando
entre chocolates  e hortaliças (ah!.. o correr dos dias  provê os despistes
de todas as urgências), mesuras, guimbas  
e o deplorar da miséria que sempre povoou nossos arredores,  
fosse ali onde ela morava
- e é aqui perto, e por isso estou aqui neste poeira à espera apenas
de vê-la passar, eu que já estou mesmo à beira,  e uma deriva a mais ou a menos
não afetará meu certo itinerário –
neste subúrbio  que eu conhecia só pela janela do ônibus agora que não dirijo mais,
fossem os impulsos intrínsecos de sua nobre alma, e que também  me cativaram
logo em seguida  às pernas e aos olhos
como a Teresa de Bandeira, só que lá era um amor que terminava em corpo
gênesis às avessas antes de seu início e nem deu
para que os amantes se situassem, e sabe-se lá se desejariam,
em relação ao desengonço do mundo,  
quanto a ela no máximo a circunscrevi à minha alma em frangalhos
quem sabe se ela é donzela, quem sabe se ela namora,
em que cidade antiga se sabe lá onde mora
e desse jeito circunscrevê-la  é tudo o que posso
pois  que ainda quem sabe se talvez sobeje desejo já me falta a fibra
assim como nela nada falta, que a finjo chinesa numa Damasco impensável,
esconjurando-a,  se necrófila, disfarces do meu fracasso,
que juro sim de seu desejo ao meu emaranhado
pois percebia  pelo simples toque de seus dedos quando fortuitos me visitavam
uma vocação caligráfica que eu adoraria que me pontilhasse a pele
prospectando-a e perfurando-a poro a poro antes de me perdoar
valendo-se de  todos os bálsamos de Betania, Beijing ou Gileade
paciência, me digo, paciência,
- não serão seus delicados pés que virão a pisar-me e a perscrutar-me os chacras para restituir-me a vida eterna por  cuja perda pago a minha cota de não conseguir me apagar de todo o Paraíso -
quantas vezes me disse e por lá a procurei e mesmo
entre alamedas de velhas árvores calcinadas cheias de despachos e caçambas
no cemitério local
e era só que a encontrasse e lhe dissesse, desdenhando Isaías,  que o dia se levantaria,  
mais um dia feliz
e que eu lhe sorrisse e ao me retribuir ela me iludisse como se valesse
uma experiência mística
um galardão, um pódio, um milhão que me recompensasse a devoção
antes da devastação, dos bombardeios, das minas pelos campinhos de pelada
mais do que as promessas que me chegam via email
prometendo-me revigorar a performance sexual
logo ela que enxerga em mim um velhinho domesticado a cuidar
de gatos e samambaias, que apenas aprecia, como estas,
viver à sombra,  sem ter a malícia e a dissimulação daqueles, o sei porque ela
me disse, sem deixar de deixar que eu reclinasse a cabeça em seus ombros,
a cingisse  levemente acima dos quadris e lhe adivinhasse o túmido contorno
e o delicado aroma dos seios e por isso
é que não foi em Damasco não, eu já disse, assim como ela não era
chinesa e todas essas coisas também se passam sempre
como se fossem e como se não, mas é verdade que ela me disse que sou
a sua grande frustração pelo desencontro no tempo
o tanto que ela lamenta que eu tenha tido pressa em nascer ou será
que foi ela quem perdeu um bom tempo tentando entender a substância dos anjos
e como mais uma vez como sempre esse filme não começa
a única recompensa são essas anotações no vento poeirento da tarde arrabaldeira,
enquanto me lembro que estou mesmo à beira e se desfaz
a expectativa  mística nestes versos mal ajambrados que me ajudam a embaciar os  olhos
que não esperam outra coisa que não que alguém me leia e nem leve a ela
os esboços que lhe dedico caso não prestem
ou mais ainda: caso venham a prestar.

Assim ele fez uma pausa, que eu esperava breve, como se por instantes
fosse movido apenas pela necessidade de retomar o fôlego,
e quando eu dei por mim que seu silêncio já se estendia demasiado
- não sei se cochilei - foi que notei que ele se calara de vez
ou foi então o tumulto que súbito se instalou ao nosso redor
e não seria ainda a destruição e o desmanche, mas era
o cinema interditado, uma porção de gente a berrar
as mandíbulas de ódio a espumar sangue pelos olhos
e a viatura suspeita que o  havia recolhido a partir de uma denúncia
por uma parolagem sem propósito, sem assédio, sem sentido
algum.

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