AGUARRÁS
Aguarrásé o mais recente livro de poemas do escritor amazonense Daniel da Rocha Leite. O autor, com reconhecimento adquirido em diversos prêmios, já conta com dezesseis títulos publicados e espraia versatilidade entre romance, conto e crônica. O novo volume veio à lume pelas Edições do Escriba, do Pará.
Aguarrás apresenta um conjunto de poemas originados da intensa perturbação do autor com o silêncio que a página simboliza na linguagem. O livro é sua busca em arrancar da brancura a palavra, ou ainda, sua tentativa de vislumbre sobre o momento inicial da significação no que antes era apenas silêncio. A ideia do papel em branco como metáfora do silêncio é central, a tinta da palavra, por sua vez é o solvente que mancha esta superfície, ou rompe a substância virgem do silêncio. Esvaziada da palavra não haveria existência e não se reconheceria nem a própria humanidade. A palavra dissolve a mudez, ergo vida (criação).
A tentativa de aproximar este momento primordial do rompimento do silêncio faz com que o poeta esvazie sua linguagem de verbos e renda-se a uma intensidade de imagens ao longo das páginas. Aguarrásé perene de versos de grande conteúdo imagético, que se encaixam como um mosaico – ou flashes– estabelecendo coerência na poética de Daniel da Rocha Leite. Como no poema “Espesso”, momento inicial do livro, que espalha um verso por página, assim intensificando o efeito intrínseco do silêncio e contrapondo a palavra como peças que se integram passo a passo. Os versos apontam o surgimento: “caem os pássaros// o/ peso do corpo durante o tempo// o/ peso da palavra durante o silêncio// eu te olho com o meu sangue// acendes o rio”.
Logo ocorre o desdobramento da metáfora central – mais precisamente localizada na idéia que o branco da página suscita – nas possibilidades de um rio. Elementos que compõe o imaginário ribeirinho do Amazonas surgem e o autor é zeloso em usar estes elementos fora do imaginário regional. O surgimento de palavra tenta ser cartografado por elementos como: margens, náufrago, travessia, praia, água, corais, cais, âncora, leito, entre outros. esta exploração não tornada simples, o encantamento com a busca e a complexidade do objeto certas vezes parece naufragar o eu lírico, como parece enunciado pelos versos do poema “Narcose”: “afogado// o teu silêncio ainda respira em mim”.
Cabe observar que a palavra silêncio – assim como sua ideia - é repetida tantas vezes que se torna um rumor interno do livro. A palavra passa a significar seu oposto, abalando o elo entre o som e o sentido. Este último, ponto central na jornada poética de Aguarrás. Uma vez que a ausência de som desaparece, a palavra silêncio encerra um novo paradoxo, entre seu som e o que quer significar. Aguarrás parece nos apontar que certas buscas, encerram em si mesmas as respostas e os objetivos; fenômenos que significam por si só tanto quanto em seus desdobramentos.
Destaco ainda o poema “Alimento”, central e minimalista, comunica-se com os demais como o cerne da metáfora da página e a oposição branco x palavra, que é a tônica do autor em Aguarrás. O poema “Marquise”, por sua vez abordando o nas estrelinhas a chuva, parece correr à margem do tema central, fugindo, ou desviando o pensamento do leitor por um momento. Esta digressão – ou quase – oferece um contraponto lírico com um dos mais belos conteúdos visuais poeticamente instaurados no livro.
Daniel da Rocha Leite é muito consciente com o espaço geográfico da página. Utiliza a liberdade conquistada anteriormente por vanguardas literárias para distribuir os versos por todo o espaço da página. Há o efeito de palavras caudalosas como o rio, que já havia surgido nos versos dos primeiros poemas de Aguarrás. Em outros momentos o verso surge no centro da página como tela emoldurada, ou provavelmente ilha no leito do rio.
Aguarrásé um livro de poemas ágil em sua leitura, com um agradável impacto visual que converge com sua proposta de busca pela nascente da palavra na página. O livro também se abre para uma reflexão estética a respeito do ofício literário, sobressaindo o silêncio e a solidão do autor, inerente do processo de criação. Sua leitura certamente irá atingir não apenas os que apreciam a metalinguagem, mas os que preferem uma lírica profusa em imagens em estado de poema.
Boas leituras.
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Roberto Dutra Jr. é um escritor em resistência, carioca e deslocado. Mestre em Letras, foi editor da Revista Escrita, contribuiu para o jornal Panorama da Palavra e escreveu artigos acadêmicos. Atualmente oferece consultorias literárias, e leciona quase na clandestinidade. É colunista regular do blog literário Zonadapalavra (www.zonadapalavra.wordpress.com). Colabora com a revista Mallarmargens e usa o Instagram (@robertodutrajr) para experimentos fotográficos com a palavra. Alguns de seus poemas foram publicados na antologia Escriptonita (Patuá, 2016). Leia mais textos do autor aqui.
Daniel da Rocha Leite é advogado e licenciado pleno em Letras, com habilitação em Língua Alemã. Mestre em Comunicações, Linguagens e Cultura, pela Universidade da Amazônia e doutorando em Estudos Comparatistas na Universidade de Lisboa. Recebeu em 2007, o Prêmio Carlos Drummond de Andrade promovido Sesc – DF. No mesmo ano foi finalista do Prêmio Machado de Assis pelo Sesc – DF. Por quatro vezes venceu o Prêmio IAP, promovido pelo extinto Instituto de Artes do Pará. Com o romance Girândolas, venceu o Prêmio Samuel Wallace Mac-Dowell, da Academia Paraense de Letras, em 2009. É um dos mais premiados autores paraenses. Possui dezesseis livros publicados entre poesia, contos, crônicas, romance e literatura infanto-juvenil.