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5 POEMAS DE JOÃO AUGUSTO

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Canto II

              Para Janaína Caram Vizicato

O ar amadurece as nuvens, os pássaros, os sonhos. A terra amadurece os homens que germinam a dor dos que não sabem sonhar. O século está pobre, Jorge. Onde é que vou buscar arroz e poesia? Pobre o chão em que me pisa a lembrança. O dia de colher a rua e seus novos pobres. Há falta de cisne nos olhos das pessoas. O presente embaciado, mudo, empobreceu a língua e o estômago de minha gente. São pobres as canções de interpretar o mundo. Os cartões de Natal, que já não trocamos. Devo despir-me do que é belo? Nascem cem palavras de dentro de outra palavra. Um amor não nasce. Na fila dos loucos, encontro todas as minhas gerações. Países remotos saltam de barcos para dentro dos nossos quintais. Estendo a cabeça para fora deste poema. A vida publica anuncio à procura de personagens. O Brasil e suas canções de ninar. Entre a pedra e o sono, preparo o meu violão.


A antimáquina

As ruas com seus cabideiros pendurados de almas. Eu recolho nomes que o mundo rejeita. Corpo vivo, acende-se. O cheiro fêmeo das palavras. O real entranhado na carne. A noite não guarda luz porque vive, sobre nós, o mais escuro dos medos. A claridade entorpece os olhos. Uma ciranda de sombras dança sobre o fogo da vida. Ver é admitir o absurdo de existir, como um jardim cultivado às avessas. Guardo um olhar desacostumado à vida. Não é preciso chover maçãs para acreditar em sonhos. Algum tempo deixei fechada, em mim, a caixa de encantamentos. Homens, mulheres, crianças, cabides e maçãs. Cultivo macieiras dentro de garrafas. E lanço-as ao mar. Sou uma máquina lenta entre homens à velocidade da luz. Sou a página vazia, o poema que ainda não nasceu. Sou o último anti-herói.


Canto III

Talvez eu pendesse, um ramo solene, e recuasse meus olhos diante da luz. E então, nesse átimo, em que a vida nos rouba o ar, restaurar o entendimento entre o homem e a vida.  Não havia sequer, na infância das cores, um arbusto em que coubesse um descanso. E como se nascesse, de uma tela vazia, um grito branco, que aos poucos cobrisse um terraço de brancas estrelas, ainda pela manhã. Sonhava-se o verso vivo da utopia. Em que todo o céu descesse seu vestido e, por trás da pele dos seres invisíveis, jorrasse um canto encarnado de amarelo. E toda a secura do campo dos meus olhos guardasse, então, alguma paz. E todas as pontes, antes intocáveis, acendessem teu nome, em minha memória, como o mais desejado dos girassóis. (João Augusto)


Canto XXIII

A minha poesia nasce do que me emudece. E forjaram no homem a própria ferramenta de sangrar. O êxtase não está na presença de deus. Mas na clausura rompida, como uma cela aberta no peito. Nascemos em cárcere privado. Andamos, parimos e padecemos, como anjos soltos, entre grades e paredes, tingidas de carne, ossos e sangue. O suicídio mata sempre a pessoa errada. Amar é correr o risco de ser livre. E forjaram no poeta a triste liberdade de ser só. Não há retornos. Meu girassol canta todas as manhãs os galos mudos de João Cabral. A flor mais lúcida nasce na adversidade. Não plante espelhos para cultivar verdades. A palavra só existe onde o silêncio permite.

A Charles Baudelaire

Marte é menos estranho do que minha pequena biblioteca. Embalo meus livros para que adormeçam e se revelem nos sonhos. A racionalidade como uma escala da fantasia. Minha psicóloga diz que os submarinos não morrem, apenas se escondem melhor. No fundo, mesmo na engenharia que me funda como poeta, somos o extremo do sonho, o concreto da utopia. (Ao final dos meus anos, espero sair com vida. Como uma caixa de música sobre o móvel, há tempos esquecida.) Os homens guardados em retratos me pedem conselhos. Observo quadros urbanos, como um flâneur parisiense. A mulher que passa como uma lanterna, na noite atormentada de sons e olhos mudos, rouba-me a única palavra possível.
*    *    *


Nascido em 4 de julho de 1974, em Bebedouro, SP, desde 1982 João Augusto adotou Ribeirão Preto para morar. Começou a escrever poesia aos 30 anos. É pai da Letícia e do Gabriel. Marido da Elaine. Já publicou Poesia de Telhado (Escrituras) e A Verdade é a mais Bela entre as Falsas Criaturas (Patuá). Jornalista. Já trabalhou com roteiro de cinema e teatro.







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