OS HOMENS INACABADOS
para Doni
O que os filósofos fazem mais lembram um mercado de pulgas e promessas inúteis. A filosofia consegue ser pelo menos terapêutica. Explico: na medida que se escreve sobre os próprios desesperos, esses dramas vão se esclarecendo cada vez mais, o que diminui sua intensidade, relativamente. Admiro os homens, em especial, os filósofos incompletos... Modestos em sua ciência, não são por isso mais tímidos; pelo contrário, alardeiam, grunhem, gritam. O filósofo sabe que a miséria é natural. Não cai no ridículo de achar que o entendimento da história nos ajuda a prevenir catástrofes: se a filosofia ou mesmo a história oferecesse alguma sabedoria, não repisaria nos mesmos erros. Observe, por exemplo, o sistema aristotélico, em que o teórico (θεωρεῖν) diferencia-se do prático (πράξις) e do poético (ποίησις). Há, nesse caso, por parte de Aristóteles, sapiência cética de quem sabe que o conhecimento científico não implica necessariamente em ascese moral. O sistema aristotélico congrega, por incrível que pareça, uma assistematicidade ingrediente, de que, apesar da nossa busca vã por “uma teoria de tudo”, algo escapa, precisa ceder, se quer ser entendido, às metáforas, comparações e analogias. Por τελος, não se aplica o mesmo significado dado à finalidade instrumentária e a εὐδαιμονία. Não são as mesmas coisas, não se trata, portanto, do mesmo sentido conferido. O sistema aristotélico, primeiro conjunto enciclopédico, corpus que veio a preencher as prateleiras do Museum, conserva em sua tripartição a consciência da impossibilidade de um sistema que unifique as instâncias da vida humana. Por distinguir o teórico e o prático, Aristóteles aponta, seminalmente, para a diferenciação que no Iluminismo será entre a cultura e a natureza. O animismo aristotélico em De anima distingue-se nessa matéria do hilozoísmo dos pré-socráticos: são os indivíduos que sofrem animação e não o cosmo in totum. Ao filósofo que age por incompletude, não vejo um demérito, mas um elogio. Os filósofos são incompletos naquilo que dizem, incompletos inclusive naquilo que querem dizer, mas poucos reconhecem essa importância. Pretensões por uma ἀρχή não apenas física, mas metodológica continuam sendo exploradas em nossas promessas.
Sábio, enfim, não por ser incompleto, mas por se saber incompleto, escasso na sua pretensão por completude, como que a editar pela enésima vez a ignorância socrática. A incompletude se deflagra no campo da política e da moral. Os grandes sistemas filosóficos caem por terra. Os mais ingênuos defendem e até definem qual seria o fim da história. O conceito de fim nesse caso envolve a mesma imprecisão polissêmica do equivalente grego: ora o fim se estende como morte e aniquilamento, ora como um objetivo ao qual se destinavam as ocorrências. O fim da história talvez comande ambas as acepções; nele, a história se completa; nele, a história morre. Mas há também um outro sentido, mais modesto: a história como sucedâneo de acontecimentos não acaba, porém a ideia da história como dotada de um sentido – e por que não dizer, de um destino –, sim. Ocorre agora o fim do fim da história, quer dizer, será a ideia de que a história possui um fim que teria os dias contados. Caem por terra pretensões hegelianas e marxistas, mas também as iluministas e as liberais, e mesmo as utilitaristas chegam ao termo.
Chamo a atenção para o que se chamou de o fim das utopias, mas veja: mesmo um Fukuyama continua partidário de noções utópicas na medida em que insiste na permanência do capitalismo. Caia ou não o capitalismo, e ele provavelmente cairá como qualquer castelo, a vida dos homens continuará estúpida. Prolongue-se a existência por duzentos anos e se começará a sofrer a angústia das árvores; não há como escapar de uma realidade distópica. Os homens continuarão a sofrer enquanto existirem. Um argumento contrário é se o pessimismo também não se cerca de pretensões totalitárias. Certamente, mas fazer o quê; a exposição filosófica sempre se apresenta à maneira de uma totalidade sistêmica. Mas existem autores e mesmo alguns momentos de ruptura para com essa pretensão e, por incrível que pareça, esses momentos são mais comuns do que se imagina. Ao lado dos grandes sistemas clássicos de um Platão e um Aristóteles[1], a resignação dos estoicos diante de um cosmo cuja lógica ultrapassaria a compreensão e o entendimento, mas em especial os céticos, sempre precavidos à megalomania dogmática. A moderação de Montaigne também é escandalosa: nele há algo do sábio chinês que assiste pacientemente o mundo se espatifando. Há quem os chame de pensadores menores, um socrático como Diógenes de Sínope comparado ao platonismo. Mas eles não são menores em nada, apenas se recusam à paixão narcísica de quem admira o edifício teórico que constrói. A eles, muitas vezes é conferido o mal da assistematicidade, mas esta não se trata de um erro ou de uma deficiência, mas de uma característica e visão específicas, geralmente marcadas pelo relativismo, mas também pela modéstia, quer dizer, a este cético mais que cético, a cruzada contra o dogma dirige-se primeiramente para si. Os filósofos menores são menores não porque as suas filosofias sejam menos criteriosas, menos teóricas ou mais despojadas, mas porque se firmam no próprio lugar menor que é a filosofia. A filosofia é menor que a vida, suas soluções nunca abarcarão em absoluto os seus problemas.
O poeta Donizete Galvão (1955-2014) fez uso de uma expressão muito feliz no título do último livro publicado em vida: O homem inacabado, diga-se de passagem, título mais que emblemático para o que seria o último livro publicado por um homem... é esse inacabamento nos versos do poeta que busco em meus raciocínios como filósofo... raciocínios que não querem terminar, recusam o ponto final, τελος e finis a se desdobrarem em verdades polissêmicas. Gosto dos poetas inacabados, dos filósofos incompletos... essa incompletude, contudo, não deve em hipótese alguma confundir-se com a apatia. Pode, pelo contrário, ser inclusive um chamado para a guerra. Penso em Henry David Thoreau (1817-1862) com A desobediência civil, manifesto dos mais contumazes da história recente e que não se enquadra como um discurso marxista, ainda que seja de esquerda. Thoreau é um pacifista, alguém que coloca em questão a responsabilidade de cada um sobre a política, independentemente da participação eleitoral, propõe uma ética fundada no indivíduo como uma arma contra as tiranias; suas raízes são tanto liberais quanto iluministas, e sim, sua filosofia representa um dos esquerdismos mais radicais. O ilocalizável é algo típico dos inacabados, dos incompletos. O problema que determina o método e não o contrário; exige a criatividade, a dispersão; o mundo mesmo é fragmentário, há tantas facetas quanto olhos vendo... O filósofo menor avança em seus raciocínios sempre em estado de ‘por enquanto’. Por enquanto, a desobediência civil; enquanto não se sabe para onde o país vai com essa história, analisa-se os personagens políticos apenas em termos psíquicos... o que fez de O príncipe, se não o maior, um dos maiores tratados de psicologia dirigido ao cenário político. O fluxo das águas não é contínuo, sofre aceleração e desaceleração; o filósofo menor acolhe o espírito dessas ondas. A sensação de incompletude interfere mesmo nos maiores sistemas. Penso na analítica de Kant sobre o belo, ao mesmo tempo universal e privativa ou então, na ‘moral provisória’ por Descartes. Outros nomes ainda aparecerão na sucessão dos textos em que homenageio suas figuras: Erasmo de Rotterdam (1466-1536), Étienne de La Boétie (1530-1563), homens maravilhosos que estiveram, como hoje estamos no século XXI, no olho do furacão que fora o século XVI e a passagem do medievalismo para a modernidade; mas não estou eu consultando a história numa atitude que pouco antes rejeitei? Não estou retomando a história desses homens como uma lição? Assumindo a história como completude, e mesmo, mais além, como o rasgo de um destino? Em primeiro lugar, consultar a história não confere a ela a paixão de um fim; esta continua enigmática e infiel. Consultar a história não é diferente de consultar o oráculo, ouvir os deuses... necessário e, ao mesmo tempo, uma decisão completamente inútil.
[1]Ainda que em Aristóteles, como vimos, haja elementos que colocam em xeque a mesma pretensão pela unidade.
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André Luiz Pinto da Rocha nasceu em 1975 no Rio de Janeiro. Formado em Enfermagem pela Uni-Rio, chegou a exercer essa profissão por três anos. Graduou-se mais tarde em Filosofia pela Uerj, cursando o mestrado em Filosofia pela mesma universidade. Atualmente cursa também pela Uerj o doutorado em Filosofia, desenvolvendo uma tese em Filosofia da Biologia. Publica poemas e ensaios há dez anos em revistas e jornais de literatura. Com Eduardo Guerreiro, editou a revista .doc. Leciona na Universidade Estácio de Sá. Publicou "Flor à margem" (1999), "Um brinco de cetim" (2003), "Primeiro de abril" (2004), "ISTO" (2005), "Ao léu" (2007), "Terno novo" (2012), "Mas valia" e "Nós, os dinossauros" (2016). Leia outros poemas do autor aqui e aqui.