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Ilustração: Dalila del Valle |
há realidade incrivelmente onírica: há sonhos absurdamente reais. a noite caíra sem lua naquele dia, e minha prima, que passava uns dias em casa, tantico mais velha, foi quem teve a ideia. meus pais dormiam. nós também estávamos embaixo da coberta quando vimos passar pela janela o desfile das nano-estrelas piscadoras. no interior em que vivia, quase não havia casas à época. ao lado da nossa passava um rio que refletia o céu durante as noites. mas naquela noite não havia céu. é que as estrelas caíram na terra, disse minha prima. a partir daí me enrosco, minha memória é confusa e retalhada. lembro-me que demos as mãos, abrimos o cadeado e saímos de mansinho, cortando alguns caminhos secretos até o vale das flores azuis. era noite escura, nada se via, mas as flores eram azuis, isso eu sei, tão brilhantes como aquelas estrelas fugitivas. ela colheu um cravo e o colocou nos cabelos. achei-a linda naquele instante. quis dizer isso, mas não sabia dizer essas coisas. então disse que tinha medo, que deveríamos voltar para casa. ela riu. ela não sabia dizer medo. Acabei descobrindo que só homens têm medo, mas isso foi já muitos anos depois. lá vem as estrelas!, disse, apontando ao pequeno horizonte próximo de nós. enxames de pontinhos brilhantes
vinham dançando, enfileirados, formando num pisca-piscante imagens rapidíssimas no ar. primeiro um castelo com dragão na crista. depois um sorvete de quatro, minto, cinco bolas. depois uma minúscula roda gigante. e assim vinham. não são estrelas, gritei, são pirilampos! ela riu. claro que são pirilampos! minha prima sabia desinventar as coisas. puxou uma sacolinha do bolso e começou a rodar. prendeu vários deles lá dentro. pegou um com todo o cuidado e me pediu para chegar perto. apontou a bundinha acesa dele para mim e desenhou um pássaro na minha camiseta branca. falou “voe!”. ele bateu vôo e se juntou aos outros pontinhos, desfazendo-se numa borboleta de quatro asas. olhamo-nos maravilhados e alguma coisa aconteceu nos meus lábios. sinto o gosto, mas não me lembro. voltamos correndo para casa. com a sacola de pirilampos? não sei, não a vi no outro dia. pensei que poderia ter tido um sonho, mas o primeiro sorriso da minha prima, pela manhã, dizia-me que não. havia um pássaro imaginário desenhado na minha camiseta, vi-o batendo asas o dia todo. ela foi embora. os anos também. tivemos pouco contato desde então. quando minha vó morreu, ela me deu um abraço. choramos e nos desencontramos por aí. essas imagens nunca saíram da minha cabeça e, com o tempo, outras melhor imaginadas devem ter entrado. por conta do grande acaso, encontrei-a no ônibus numa manhãzinha em que íamos ao trabalho. sabia que ela tinha acabado de ter um filho. quantos meses? já tem oito, disse. ela se sentou ao meu lado e conversamos sobre um monte de desnecessidades. até que quis tocar no assunto, nas lembranças. só ela poderia me dizer se tudo aquilo, ou alguma coisa, aconteceu naquela noite. e se fosse tudo sonho? se tudo fosse realidade? nossos olhares se encontraram naquele segundo e não pude perguntar. um pássaro verdadeiro batia asas no meu peito, foi pena pra todos os lábios. tenha um bom dia, apareça em casa, dissemo-nos. desci no vale do anhangabaú. ela foi piscando para o vale das flores azuis.
de "Cravos da Noite" (Patuá, 2014).
Willian Delarte é autor dos livros Sentimento do Fim do Mundo (poesia, 2011) e Cravos da Noite (contos, 2014), ambos pela Editora Patuá (SP) e O Alien da Linha Azul (Edições Incendiárias, 2016). Premiado no II e III Festival de Literatura da Faculdade de Letras (FFLCH) e finalista da 15ª edição do “Projeto Nascente”, todos da USP. Tem publicações em diversas revistas e antologias. Foi co-editor da revista Rebosteio Digital.