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3 POEMAS INÉDITOS DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT

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a menina morta


de madrugada, com insônia,
saí da cama e desci à sala. sem
ânimo para ligar a tv ou retomar
o romance que estava lendo, fui à estante
e peguei, ao acaso, um antigo
volume encadernado em marroquim
vermelho comprado há anos, muito barato,
num sebo que já não existe, e que acabei nunca
lendo. autor brasileiro de pouca fama quando
vivo, hoje completamente esquecido,
da virada do século XIX para o XX. rio
de janeiro, livraria garnier. abri uma
página, ao acaso, e comecei a ler.
o trecho descrevia a cena na qual
um pai viúvo fazia serão, noite adentro,
ao lado da filha doente, na cama. a menina
transpirava, ardia em febre; todos os
médicos disponíveis na pequena cidade haviam
lutado para salvá-la, uma miríade de
remédios haviam sido ministrados,
tudo sem sucesso. não havia mais esperança e,
naquela mesma tarde, o vigário motta, amigo da
família, havia dado a extrema-unção.

mas agora já era noite alta, eram só pai e filha,
e então a menina disse, com a voz tão fraca que era mais um sussurro:

papai, papai, ó meu papai querido,
não fiques triste. estou indo já, vou
me encontrar com a mãezinha
lá no céu, estou feliz, papai, um lindo anjo
de asas muito alvas apareceu para mim
e disse que mãezinha está
logo ali no céu, ladeada pelos santos
e por jesus cristo, a me esperar.

em seguida os olhos da menina se fecharam, ela deu
um último suspiro e, com o rosto aparentando serenidade, morreu.
e o pai ficou ali, velando o corpinho da filha, até o amanhecer.
o livro não era bom, não prossegui na leitura nem fui
às primeiras páginas, de modo que não sei o que se
passou antes daquela cena, quando e como a mãe da
menina morreu, nem o que aconteceu depois, com
aquele pai, dali em diante viúvo e sem a única filha.
o que sei é que fiquei com aquela imagem em minha mente,
até finalmente cair no sono e,

dormindo, sonhei
com a cena da morte, como se estivesse junto aos dois, pai e filha,
no quarto. quando acordei, de manhã, pensei
que a menina do livro, há tantos anos esquecida e enterrada
no meio de páginas que ninguém mais lê,
voltou à vida, ainda que por um instante, breve
como um sussurro, antes de morrer de novo,
novamente enterrada em páginas que ninguém mais leria
naquela minha insone madrugada.



cerrado


quando as nuvens, o campo
quando o horizonte se perder lá adiante, e
de um lado, margeando-nos, um pouco assim distantes,
as montanhas azuis
e do outro as águas ligeiras do rio das pedras;
quando a poeira da estrada cobrir de cor de terra as sempre-vivas da beira do caminho
até que a chuva chegue à tarde e caia forte e lave tudo;
quando crianças de todas as cores estiverem correndo
e brincando à nossa volta, pelo caminho, elas que vivem nas
pequenas casas de todas as cores com pomares
e roupas de todas as cores penduradas no varal
que há por aqui, veja, em toda parte por aqui.
quando cavalos, vacas, cachorros, quando tudo isso
e os pássaros que voam de dia e os da noite também,
quando as copas das árvores, frondosas que são,
quando sentirmos fome, sede, cansaço,
quando; e então.



as tvs à noite numa pequena cidade de interior


lembro de ter atravessado, pouco depois de ter caído a noite,
de ônibus, há muitos anos, uma pequena cidade de interior,
na qual eu não tinha parentes nem amigos nem mesmo conhecidos,
e de observar, de passagem, as casas, com aquela luz
azulada das tvs vazando pelas janelas, e de sentir
a sensação de conforto e aconchego que emanava
de dentro de cada casa, como aquela que me proporcionavam
quando criança a luz que saía das janelas dos trenzinhos
elétricos. lembro também de logo em seguida ter pensado
que, na verdade, dentro daquelas casas o que mais havia era
tédio, tédio, tédio e as existências vazias de falta de amor
e de dinheiro e de perspectivas, e a felicidade fugaz de viver
as vidas fictícias das pessoas nas novelas das tvs,
cujas telas, de perto, nem azuladas eram.




Pintura: "Ao leito de Morte", de Edvard Munch 


*    *    * 





André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo em 1961. É editor, tradutor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz algum poeta estrangeiro. Publicou, pela editora Patuá, os livros de poemas Outubro/Dezembro As cores refletidas nas lentes dos seus óculos escuros. E pela editora Descaminhos os romances A Vida nas MontanhasA Cultura dos Sambaquis, Cemitérios e Só uma estranha luz como pensamento.


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