a menina morta
de madrugada, com insônia,
saí da cama e desci à sala. sem
ânimo para ligar a tv ou retomar
o romance que estava lendo, fui à estante
e peguei, ao acaso, um antigo
volume encadernado em marroquim
vermelho comprado há anos, muito barato,
num sebo que já não existe, e que acabei nunca
lendo. autor brasileiro de pouca fama quando
vivo, hoje completamente esquecido,
da virada do século XIX para o XX. rio
de janeiro, livraria garnier. abri uma
página, ao acaso, e comecei a ler.
o trecho descrevia a cena na qual
um pai viúvo fazia serão, noite adentro,
ao lado da filha doente, na cama. a menina
transpirava, ardia em febre; todos os
médicos disponíveis na pequena cidade haviam
lutado para salvá-la, uma miríade de
remédios haviam sido ministrados,
tudo sem sucesso. não havia mais esperança e,
naquela mesma tarde, o vigário motta, amigo da
família, havia dado a extrema-unção.
mas agora já era noite alta, eram só pai e filha,
e então a menina disse, com a voz tão fraca que era mais um sussurro:
papai, papai, ó meu papai querido,
não fiques triste. estou indo já, vou
me encontrar com a mãezinha
lá no céu, estou feliz, papai, um lindo anjo
de asas muito alvas apareceu para mim
e disse que mãezinha está
logo ali no céu, ladeada pelos santos
e por jesus cristo, a me esperar.
em seguida os olhos da menina se fecharam, ela deu
um último suspiro e, com o rosto aparentando serenidade, morreu.
e o pai ficou ali, velando o corpinho da filha, até o amanhecer.
o livro não era bom, não prossegui na leitura nem fui
às primeiras páginas, de modo que não sei o que se
passou antes daquela cena, quando e como a mãe da
menina morreu, nem o que aconteceu depois, com
aquele pai, dali em diante viúvo e sem a única filha.
o que sei é que fiquei com aquela imagem em minha mente,
até finalmente cair no sono e,
saí da cama e desci à sala. sem
ânimo para ligar a tv ou retomar
o romance que estava lendo, fui à estante
e peguei, ao acaso, um antigo
volume encadernado em marroquim
vermelho comprado há anos, muito barato,
num sebo que já não existe, e que acabei nunca
lendo. autor brasileiro de pouca fama quando
vivo, hoje completamente esquecido,
da virada do século XIX para o XX. rio
de janeiro, livraria garnier. abri uma
página, ao acaso, e comecei a ler.
o trecho descrevia a cena na qual
um pai viúvo fazia serão, noite adentro,
ao lado da filha doente, na cama. a menina
transpirava, ardia em febre; todos os
médicos disponíveis na pequena cidade haviam
lutado para salvá-la, uma miríade de
remédios haviam sido ministrados,
tudo sem sucesso. não havia mais esperança e,
naquela mesma tarde, o vigário motta, amigo da
família, havia dado a extrema-unção.
mas agora já era noite alta, eram só pai e filha,
e então a menina disse, com a voz tão fraca que era mais um sussurro:
papai, papai, ó meu papai querido,
não fiques triste. estou indo já, vou
me encontrar com a mãezinha
lá no céu, estou feliz, papai, um lindo anjo
de asas muito alvas apareceu para mim
e disse que mãezinha está
logo ali no céu, ladeada pelos santos
e por jesus cristo, a me esperar.
em seguida os olhos da menina se fecharam, ela deu
um último suspiro e, com o rosto aparentando serenidade, morreu.
e o pai ficou ali, velando o corpinho da filha, até o amanhecer.
o livro não era bom, não prossegui na leitura nem fui
às primeiras páginas, de modo que não sei o que se
passou antes daquela cena, quando e como a mãe da
menina morreu, nem o que aconteceu depois, com
aquele pai, dali em diante viúvo e sem a única filha.
o que sei é que fiquei com aquela imagem em minha mente,
até finalmente cair no sono e,
dormindo, sonhei
com a cena da morte, como se estivesse junto aos dois, pai e filha,
no quarto. quando acordei, de manhã, pensei
que a menina do livro, há tantos anos esquecida e enterrada
no meio de páginas que ninguém mais lê,
voltou à vida, ainda que por um instante, breve
como um sussurro, antes de morrer de novo,
novamente enterrada em páginas que ninguém mais leria
naquela minha insone madrugada.
com a cena da morte, como se estivesse junto aos dois, pai e filha,
no quarto. quando acordei, de manhã, pensei
que a menina do livro, há tantos anos esquecida e enterrada
no meio de páginas que ninguém mais lê,
voltou à vida, ainda que por um instante, breve
como um sussurro, antes de morrer de novo,
novamente enterrada em páginas que ninguém mais leria
naquela minha insone madrugada.
cerrado
quando as nuvens, o campo
quando o horizonte se perder lá adiante, e
de um lado, margeando-nos, um pouco assim distantes,
as montanhas azuis
e do outro as águas ligeiras do rio das pedras;
quando a poeira da estrada cobrir de cor de terra as sempre-vivas da beira do caminho
até que a chuva chegue à tarde e caia forte e lave tudo;
quando crianças de todas as cores estiverem correndo
e brincando à nossa volta, pelo caminho, elas que vivem nas
pequenas casas de todas as cores com pomares
e roupas de todas as cores penduradas no varal
que há por aqui, veja, em toda parte por aqui.
quando cavalos, vacas, cachorros, quando tudo isso
e os pássaros que voam de dia e os da noite também,
quando as copas das árvores, frondosas que são,
quando sentirmos fome, sede, cansaço,
quando; e então.
quando o horizonte se perder lá adiante, e
de um lado, margeando-nos, um pouco assim distantes,
as montanhas azuis
e do outro as águas ligeiras do rio das pedras;
quando a poeira da estrada cobrir de cor de terra as sempre-vivas da beira do caminho
até que a chuva chegue à tarde e caia forte e lave tudo;
quando crianças de todas as cores estiverem correndo
e brincando à nossa volta, pelo caminho, elas que vivem nas
pequenas casas de todas as cores com pomares
e roupas de todas as cores penduradas no varal
que há por aqui, veja, em toda parte por aqui.
quando cavalos, vacas, cachorros, quando tudo isso
e os pássaros que voam de dia e os da noite também,
quando as copas das árvores, frondosas que são,
quando sentirmos fome, sede, cansaço,
quando; e então.
as tvs à noite numa pequena cidade de interior
lembro de ter atravessado, pouco depois de ter caído a noite,
de ônibus, há muitos anos, uma pequena cidade de interior,
na qual eu não tinha parentes nem amigos nem mesmo conhecidos,
e de observar, de passagem, as casas, com aquela luz
azulada das tvs vazando pelas janelas, e de sentir
a sensação de conforto e aconchego que emanava
de dentro de cada casa, como aquela que me proporcionavam
quando criança a luz que saía das janelas dos trenzinhos
elétricos. lembro também de logo em seguida ter pensado
que, na verdade, dentro daquelas casas o que mais havia era
tédio, tédio, tédio e as existências vazias de falta de amor
e de dinheiro e de perspectivas, e a felicidade fugaz de viver
as vidas fictícias das pessoas nas novelas das tvs,
cujas telas, de perto, nem azuladas eram.
de ônibus, há muitos anos, uma pequena cidade de interior,
na qual eu não tinha parentes nem amigos nem mesmo conhecidos,
e de observar, de passagem, as casas, com aquela luz
azulada das tvs vazando pelas janelas, e de sentir
a sensação de conforto e aconchego que emanava
de dentro de cada casa, como aquela que me proporcionavam
quando criança a luz que saía das janelas dos trenzinhos
elétricos. lembro também de logo em seguida ter pensado
que, na verdade, dentro daquelas casas o que mais havia era
tédio, tédio, tédio e as existências vazias de falta de amor
e de dinheiro e de perspectivas, e a felicidade fugaz de viver
as vidas fictícias das pessoas nas novelas das tvs,
cujas telas, de perto, nem azuladas eram.
Pintura: "Ao leito de Morte", de Edvard Munch
* * *
André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo em 1961. É editor, tradutor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz algum poeta estrangeiro. Publicou, pela editora Patuá, os livros de poemas Outubro/Dezembro e As cores refletidas nas lentes dos seus óculos escuros. E pela editora Descaminhos os romances A Vida nas Montanhas, A Cultura dos Sambaquis, Cemitérios e Só uma estranha luz como pensamento.