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Ofício das Águas - Reinoldo Atem

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A água, pela cidade,
escorre sem dizer nada.
Venha de chuva ou torneira
Ela cumpre a sua mágoa
de ser usada e cuspida
pela boca ou pela vala.

A água, pela cidade,
exerce qualquer lavagem
de pia e de outros olhos
de onde escorre mais farta
deixando sua cor nas toalhas.

Engrossando a tempestade
de  água, lameiro ou pasta,
no varal as lavadeiras
fazem-na de instrumento,
como vassoura ou martelo,
como lavoura das mãos
que brotam mais enrugadas.

Tubulações invisíveis
carregam por toda parte
do corpo-cidade a água
que nunca existe parada,
ela e seus variados
produtos e derivados,
buscando sempre o de baixo
o centro da terra amada
onde está sua morada.


Este venal habitante
de todo lugar humano
percorre também os sexos
mas nunca diz onde estava,
conhece o dentro dos corpos
mas não conta suas falhas,
qualquer buraco é bueiro
de onde sai, transformada
em lavagem, coisa usada.

Para isso vive, essa água:
pra entrar e pra sair
do outro lado, mudada,
para esconder-se e saltar
das fontes, que a fazem esguia,
para correr e lavar
a louça, os corpos e os carros,
as ruas, as folhas e as almas.

Depois, cai no rio-estrada
já meio suja ou usada
e assim não serve pra nada
que sua razão é ser limpa
e seu ofício é limpar
o mundo, a vida e depois
sair correndo pro mar.


poema publicado inicialmente  por Edições Imã - 1997.

Sobre Reinoldo Atem escreveu Miguel Sanches Neto no mesmo ano dessa publicação:

Reinoldo Atem, entre os mais autênticos e importantes poetas do Paraná, revela sua poética avessa à brincadeira com as palavras. O seu olhar recorta uma cidade habitada por gente simples, pelos meninos pobres, e dramas humaníssimos. É este olhar que diferencia Reinoldo Atem de quase tudo que se produziu em termos poéticos no estado. Um olhar sem esnobismos lingüísticos e falsos exotismos.
Seus melhores poemas não pagam o tributo para o verso curto ou para a modernidade epidérmica. Muito pelo contrário, os seus bons poemas são longos, bem articulados e revelam o domínio da macroestrutura da linguagem – coisa inusitada em nossa poesia tatibitate.
Atento aos dramas humanos, sem máscaras e sem afetações, sua poesia segue “O ofício das Águas” (título de um belíssimo poema), percorrendo os subterrâneos da cidade, e se deixando impregnar pelos detritos do vivido.

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