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SÉRGIO MEDEIROS
ANTOLOGIA BREVE














  






MENDIETA, Ana – Design on leaf (1982-1984)






















“Ninguém pode evitar ser filho do urubu e da fumaça”


IDÓLATRA 12: Na areia branca ao meio-dia dois urubus iguais se mantêm lado a lado e um deles de repente bica o bico do outro como se lhe desse um beijo e ambos se encaram pacíficos enquanto a maré vai subindo aos solavancos
IDÓLATRA 11: A fumaça negra que o trepidante caminhão lança na pista afugenta os carros que passam logo para a pista ao lado; a caminhão prossegue impávido e imponente envolvido na própria fumaça que brota continuamente
IDÓLATRA 10: A velha escuna ronca feio lançando para trás dois rolos de fumaça negra que formam sobre a água como que um gigantesco focinho de porco
IDÓLATRA 9: Esfomeado o urubu apoia uma das patas no peixe morto e começa a bicá-lo com brusquidão rodeado de gaivotas atônitas ou irritadas; uma delas começa a protestar aos gritos contra essa atitude dele
IDÓLATRA 8: Trazido por um voo lerdo o urubu pousa na luminária pública da praia mas não recolhe as asas longas; eriça-se todo; deforma-se; e imobiliza-se numa pose deselegante diante do mar da manhã
IDÓLATRA 7: O caminhão branco com uma carroceria quadrada branca como um cubo de gelo passa por uma poça lançando água para todos os lados enquanto vai soltando rolos de fumaça negra
IDÓLATRA 6: A areia da praia está povoada de garrafas de plástico velhas e de tampinhas coloridas além de dois ou três pinguins mortos que alguns urubus devoram devagar sem demonstrar ganância; entre pinguins mortos um menino passa correndo com o seu cachorro à frente enquanto os urubus esvoaçam ao redor deles; uma agitação momentânea 
IDÓLATRA 5: A enseada recebeu no sábado à tarde um barco negro que chegou para ficar imóvel emitindo de vez em quando fumaça espessa como uma casa num campo sem árvores em volta; nenhuma árvore se vê em toda a extensão da paisagem
IDÓLATRA 4: Um homem arrasta pela rua longos fios de aço e deixa-os unidos no chão curvos como uma ferradura gigante ao lado de uma caçamba abarrotada de entulho
IDÓLATRA 3: A luz da tarde é a poeira dos montes que parecem um grande rabo parado mas que avança devagar ou rápido é muito difícil de saber
IDÓLATRA 2: Numa das tardes do Sul a lua é um pequeno iglu se derretendo enquanto o sol inteiro se põe rapidamente
IDÓLATRA 1: De entre os morros baixos sobe uma fumaça que vai ganhando o horizonte como o pescoço desengonçado com bico curvo de uma ave saindo do ninho
LORD BYRON II: Quando o helicóptero dos bombeiros surge baixo na praia com as pernas nuas dos salva-vidas pendendo para fora da porta aberta estas se balançam e parecem dar um impulso extra ao aparelho que sobe um pouco mais
INSPIRAÇÃO: Os urubus se aproximam deslizando no ar em diferentes alturas e os que precisam bater as asas para continuar indo e vindo sobre a areia o fazem apressadamente como se sentissem certo escrúpulo em fazê-lo diante dos outros que flutuam tranquilos movendo apenas a cabeça de cá para lá; sem parar de apitar (e não buzinar) um só instante o caminhão que veio buscar o entulho entra de ré no quintal com a caçamba balouçante branca e negra; o silencioso urubu surge repentinamente de trás das árvores do jardim e é ágil apesar de seu voo baixo e vacilante de eterno aprendiz; sobre as palmeiras agitadas do jardim um urubu desce rápido quase sem vacilar no vento matinal qual um disco voador negro; diante do mar liso o urubu está liso também e faz uma curva baixa e lenta entre palmeiras imóveis e amarfanhadas sob o céu cinza; uma lufada de vento sul lança um guardanapo branco dobrado para fora do terraço que sobrevoa a piscina e pousa aberto no gramado como uma borboleta albina agonizante que sem ímpeto não pudesse mais fechar-se; ziguezagueando entre carros que sobem a colina a moto de repente se inclina bastante para o lado para que o motoqueiro possa cuspir na beira do asfalto; um urubu surge aberto de trás dos bambus verdes inclinados trêmulos para o lado    
EDWARD LEAR II: O vagaroso caminhão de lixo passou cedo mas esqueceu no meio do asfalto um saquinho de plástico lilás bem fechado
INSPIRAÇÃO: Só mais um: diante da praia vazia a escuna está alterada: o som do motor é alto demais e a velocidade mostra que tem pressa e que não leva turistas; de fato apenas um marinheiro minúsculo é visível correndo sobre as velhas madeiras
IDÓLATRA 12: Na calha ensolarada cresce uma plantinha hirta com três folhas verdes e uma flor branca; é um dos lugares mais inóspitos da casa no verão que se prolonga ardido



(Do livro A idolatria poética ou a febre de imagens, 2017)

















“Cinzas”


As sementinhas cabeludas
Grises
Não cessam de passar de um lado para outro

Giram, aceleram, passam
Diante do senhor grisalho que
Sob o sol forte
Não para



(Do livro O desencontro dos canibais, 2013)

















“Jerônimo Tsawé (aparição urbana)”


Enquanto os carros passam
Quase grudados

Um xavante
Na calçada

Apoiado num bastão
Como num totem

Olha tranquilamente
Para o lado de onde vem
Esse trânsito intenso

Como se mais nada almejasse
No abafado fim de tarde



(Do livro O choro da aranha etc., de 2013)

















“A flora inquietante”


a palma verde se mexe bruscamente

como um pescoço suado de cavalo
a espantar enxames
de moscas



(Do livro Totens, 2012)

















“O primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto, o sexto, o sétimo, a oitava, a nona, o décimo, o décimo primeiro, a décima segunda (a primeira ausente), o décimo terceiro (o primeiro ausente), o décimo quarto, o décimo quinto, o décimo sexto, o décimo sétimo, a décima oitava, o décimo nono (o segundo ausente), o vigésimo, o vigésimo primeiro, a vigésima segunda, o vigésimo terceiro, o vigésimo quarto, o vigésimo quinto, o vigésimo sexto, o vigésimo sétimo, o vigésimo oitavo, a vigésima nona, o trigésimo, o trigésimo primeiro, o trigésimo segundo, o trigésimo terceiro, o trigésimo quarto, o trigésimo quinto, o trigésimo sexto, o trigésimo sétimo, o trigésimo oitavo, a trigésima nona, o quadragésimo, o quadragésimo primeiro...”

A sombra da massa é redonda e o contorno esgarçado
Ela se gruda no chão revolto como um grande peso

A sombra continua ali
Mas o contorno se contorce devagar – continuamente



(Do livro Figurantes, 2011)

















“Um peixe-folha...


A folha estava no galho. O galho na árvore. A árvore no quintal. O quintal na praia. O vento às vezes era forte.

Foi então que a folha decidiu ser peixe e foi embora voando no vento.

Pousou nas pedras. O mar estava perto. Havia voado para trás ou para a frente?

Veio da praia uma rajada fria e a folha correu loucamente nas pedras do terraço. Estava num terraço? Rolou de cá para lá como carapaça vazia de um tatu. Um tatu-folha.

Quando o vento parava a folha parava: angustiava-se. Faltava-lhe ar.

Entusiasmos súbitos a faziam correr de um lado para o outro... Mas a folha sentia nitidamente que não levantaria voo. Sentia que era uma casca seca. Casca dura. Curva. Transformara-se num tatu-folha.

Pensou: como tatu-folha poderei correr por aí. Sempre rente ao chão. Então serei um caranguejo. Correrei mais. Alcançarei o mar.

Serei gelatinosa. Tatu transparente. Correrei para o fundo do mar. Depois nadarei entre os peixes. No meu cardume.

A população de tatus aumentava no terraço. As folhas secas batiam umas nas outras a cada lufada de vento marinho.

A folia era tanta...

Porém nunca se viu ou pescou um peixe-folha. Talvez.

Mas folhas grandes e pequenas boiam no mar.



(Do livro O sexo vegetal, 2009)

















“Xibalba”


Sala I
No centro da sala
um banco de ferro
bem aquecido:
no chão, ao redor,
bonecas e bonecos grandes
com o traseiro e
coxas danificados,
consumidos pelo calor
abrasivo

Sala II
No centro da sala gêmeos
idênticos – sem lábios;
seus dentes, expostos, batem
sem parar: frio, ódio,
ou descontrole?
Não dão um passo –
para lugar nenhum.



(Do livro Totem & Sacrifício, 2009)

















“Casal de doudos (dança folclórica)”         


-- fatias firmes de água se esfregam num ralador de areia: a maré ferve mais caudalosa (148)
-- os olhos não pousam nem repousam em nada – são vistos nus pela paisagem que os holofotes estimulam (122)
-- a água se (com) ~
torce, ~
se dobra ~
~ e não passa; ~
a água se (con) ~
torce, ~
se dobra etc. ~ (01)
-- a barriga vira de costas no corpo: paira, dispensa as pernas que se erguem = voa, o corpo para ou vai sozinho atrás (05)
-- a folha seca gira como charuto na boca larga do vento rasteiro (155)
-- os grãos luminosos rodam na baía como numa peneira: uma poltrona vaga num corredor de água (31)
-- o homenzinho avança de saia longa – zanza: alonga um terceiro pé mecânico que apara a grama – a máquina alisa o solador no tablado natural (63)



(Do livro Alongamento, 2004)

















“Primeiro ato (versão sintética)”


- : Sem...
+ : Voz.



(do livro Mais ou menos do que dois, 2001)



















                                    
Sérgio Medeiros

É poeta, ensaísta, tradutor e professor de literatura na UFSC. Publicou o ensaio "A formiga-leão e outros animais na Guerra do Paraguai" (Iluminuras) e traduziu, entre outros livros, o poema maia "Popol Vuh" (Iluminuras), indicado ao Jabuti na categoria melhor tradução, e a crônica histórica "A Retirada da Laguna" (Companhia das Letras), do Visconde de Taunay, texto escrito originalmente em francês. Publicou vários livros de poesia, como: "Mais ou menos do que dois" (Iluminuras), "Alongamento" (Ateliê) e "Totens" (Iluminuras). Seus poemas já foram traduzidos para o espanhol, o italiano e o inglês. Seu poema em prosa "O Sexo Vegetal" (Iluminuras), de 2009, finalista do Jabuti, foi publicado em inglês sob o título "Vegetal sex" (UnoPress/University of New Orleans Press, 2010). Colabora no jornal "O Estado de S. Paulo".





















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