Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

14 POEMAS INÉDITOS DE LINALDO GUEDES

$
0
0
Erik Johansson

A fala da fala do mar


ouça, o mar fala conosco
sussurra lições do eclesiastes

brada aos ventos

(nada)
em moinhos quixotescos

o mar canta aritmética
implora a pitágoras
a perfeição, a perfeição de deus

o mar
fala a nós de camões
e do fraco rei que torna fraca a forte gente

o mar
estupida o irreal
o mar, sabemos,
sim é real

som sem melodia

ah, é música!

(vamos dançar, agora?).




A noite demora a cair em Buenos Aires


a noite demora a cair em Buenos Aires
como um tango de Gardel que quando se vê já dançou
e você ficou ali, na esquina do obelisco
falseando o castelhano
para entender o cigarro nervoso do hermano
que passeia as ruas centrais com seu vício
enquanto nosotros traduzimos livrarias

a noite demora a cair em Buenos Aires
porque o diálogo com cortázar
não é mais difícil do que torcer por maradona
jogos de amarelinha no Caminito
jogos e paixão na bombonera
na ateneo, a sentença de borges
incapaz de imaginar um mundo sem livros

a noite demora a cair em Buenos Aires
(mas cai)
e traz casais dançando numa praça qualquer da cidade
e o passeio por cafés, cafés e cafés
até ver o silêncio esnobar a madrugada
e você tirar o sol da algibeira
para que a noite possa subir em Buenos Aires.




Bica

                            para Vinícius Guedes


jacarés
em silêncio
ruminando o bote na natureza humana

leões na jaula
- presas da civilização

araras
em voo para o nada
: gaiolas de ilusão

macacos
em saltos graciosos
(bananas ao homem)

(no passeio, palmas para os acuados animais
que não assustam nem as criancinhas).





Cabo Branco e outros mares


trago medos da barreira de cabo branco
saudades de barracas e agueiros
meu pai beliscando uma agulha
o menino que corria nas areias do sol

trago memórias do sal de tambaú
e do imponente hotel, cartão postal da maresia
lembranças do mercado, dos bares, da lua
o menino lambendo os dedos afrodisíacos

trago a solidão escura de manaíra
e o descampado vazio de seu calçadão
cantigas de nada para os pescadores da vida
cantigas de espumas nos pescados dos pratos

trago outros mares que jogam suas ondas em minha lida
bessa, e seus bares da moda
a penha, com seus hábitos populares
o seixas, onde o sol nasce primeiro
jacarapé, onde os corpos morrem primeiro

trago alegrias do cabo branco da infância
e medos, do cabo branco amanhã
trago dores e os banhos de sargaços na alma
trago suas tatuagens, marcando minha pele no azul do mar.





A cor do rio


breu:
o cristo redentor finge não saber
de seus entornos
dos cochichos nos morros
de como se cochila
e morre
(nas encostas)
(nos encostos)
do que a mochila esconde
na floresta da tijuca

por trás do corcovado
flanando embaixo do bondinho
caminhando em copacabana
o pivete de chico ainda vende chiclete
mas já não faz salamalaque
: mastiga poemas drummondianos
e só sossega ao ouvir o funk da fernanda abreu.

Chema Madoz



Jaguaribe


era menino
e corria ruas, Jaguaribe
e corria (bolas), Jaguaribe
corria atrás de jambos machucados
corria atrás de anos abobadados
mas preferia os meses paralelepípedos
pés descalços rumo à bodega do velho
(o novo ainda não sabia do saber)
mãos grudadas de cantigas que não cantava
e contava até dez (melhor estivesse contando ainda)
enquanto os gêmeos escondiam suas semelhanças
pés no pedal, na bicicleta que não era sua
e pedalava o futuro que hoje é só passado
e pedalava com Lili a comer uvas no supermercado
(que os fiscais não nos viram!)




Ponto de Cem Réis


no centro do mundo da paraíba
umbigo da geografia paraíba

ali, no imenso ponto vazio
tudo que é alma, paraíba de estio

poetas ainda circulam precipícios
no pátio extenso que esconde agasturas

ali, vi políbio Alves arrotando o varadouro
no cafezinho em que gonzaga faz seu cronicário

ali, reginaldo e sua banca trazem as boas,
que as más vinham da língua de mocidade

de olho no relógio da dezoito dezessete
de olho na pregão do vendedor (em falsete)

de olho no paletó branco de caixa d´água
e da noite que abruma traficantes

até o sol chegar e bater no teu olhar, paraíba
até a graxa do menino limpar teus sapatos, paraíba

no décimo oitavo andar alumiar outros clarões
e      pagar     com      cem      réis      o      preço      de      teu      amor,      paraíba.



São Paulo


há um que de melancolia
nas gotas de garoas que caem de tuas alamedas
há um que de arrogância noigrandes
na tua inventividade poética tipo exportação
há um que de boemia cosmopolita
nos bares que bebem a vila madalena
há milhões de ques de afeto e carinho
na forma como acolhes imigrantes e outros mundos
há um que de vanguarda modernista
e as telas de malfatti manchando a podre burguesia
há a canção de caetano e as meninas de sampa
que ninguém vê, pois estão trabalhando suores
há a avenida paulista e sua multidão
que, de posse do legado deixado pelos jesuítas,
faz novenas diárias para cantar seu refrão: "Non ducor, duco".



Bússola


meus instrumentos de navegação
estão em meus próprios pés

e ele navega como um pequeno barco
indo de um lado a outro de oceanos

sem enjoos, negando os eu te amos
indo para lá, indo para cá

ao sabor dos ventos, tempestades
ancoradas no fundo do lar

titanics que nunca, nunca afundam
mas ficam boiando no mar

meridiano magnético de corações
e dentes que só mastigam espinhas

imã de sensações que já já acontecerão
não se sabe em que porto

não se sabe em que seios, eu sei,
acontecerá o repouso do destino

terra à vista, dirão os piratas das cidades
mas onde (?), -  logo ela fica invisível

logo a terra marulha também
vira uma espécia de tsnunami no olhar

mas como na parábola do elefante
não consigo ver além da minha tromba

viro torrão de sal no mar, não na xícara
e nem os mapas me localizam

“para onde vou (?)”
- “responde, poesia, musa que não sabe das flores!”.


 

Fado


em Lisboa
talvez haja um dia de Naurõz

e ao invés de renovar a criação
se recrie o desejo agoniado

lábios à vista!, diriam os descobridores:
tesouros que precisam germinar fados
em guitarras do destino
- tejo que vira afluente do sanhauá.


Thomas Barbéy


Impressões de um forasteiro


boa viagem é um grande descampado:

léguas e léguas de veículos
apostando corrida
e atropelando o asfalto;

quilômetros e quilômetros de quiosques
todos uniformizados
- porque o diferente é ser igual;

nas calçadinhas
meninas, sempre de saias,
namoram meninos, cheios de dedos;

gays desfilam sua libido
em passeios
nem sempre tranqüilos;

mais adiante,
atletas da noite exercitam os músculos
em halteres e barras pudicas;

no imenso descampado da beira-mar,
outros atletas jogam futebol na areia
e nem sentem a noite saindo da veia;

de um ponto a outro do descampado
- retrato desfocado da veneza nordestina –
só não se vêem poetas
e seus recitais para a imensidão do nada.




Plano piloto


brasília
é um ponto vazio
no planalto

esquinas escondidas
entre quadras

tudo parece embutido
estranho
por debaixo das vergonhas
:
teatro
catedral
prédios históricos

tudo subterrâneo
ao mesmo tempo tão acima
no planalto

original niemeyer

templo moderno
em duelo silencioso
com os candangos

brasília é o novo mundo
sonhado pelos profetas
mas ainda inacabado
feito este poema, em aberto.




A Lua, as luas


há uma lua em cada alma,
há lua até na alma daqueles que não têm alma

há uma lua em cada poeta
embora nem sempre exista lua no poema

há uma lua para cada ausência tua
satélite natural, corpo estranho no átimo

há uma lua para vaidade selfie
e uma lua que não fica presa na imagem

há uma lua, e outra lua, ambas
perambulam entre desertos e outros

nyati.


  
Ilha dos azulejos


os bois se esconderam
por entre azulejos portugueses
e guias que contam a lenda da carruagem de ana jansen

por entre azulejos
(e beijos na encosta de teu azul)
ouço os ecos dos tambores de crioula
ouço a métrica dos versos de gonçalves
- não aquela velha canção do exílio
: mas a que fala que a vida é combate,
que os fracos abate

por onde andarão os dramas, Artur de Azevedo?

ruas, ladeiras, ruas, igrejas, ruas, azulejos
ilha do upaon-açu
que trazes para minha poética, além dos versos de cassas e os índios que não vi?

ruas, ladeiras, ruas, palácios
leões e poderes quase eternos na ilha que, dizem, tem dono

ruas, ladeiras, ruas, paladares
arroz de cuxá
iguaria e sabor qual teu umbigo

ruas, ladeiras, praias, memórias

longe, o menino que brincava nas ruas de codó
entre o catimbó e as tardes de domingo no cinema

ruas, ladeiras, ruas, praias

calhau e suas dunas escondendo a vegetação

ruas, ladeiras, ruas, o clima

o calor na ponta da língua
de uma ilha que tem sua própria língua
de um povo que devora a maré
 
na ilha de são luís.



(Linaldo Guedes é poeta e jornalista. Natural de Cajazeiras, lançou “Os zumbis também escutam blues e outros poemas”, “Intervalo Lírico”, “Metáforas para um duelo no sertão” e “Tara e outros otimismos”. Os poemas acima fazem parte do livro “Cabo Branco e outros lugares que não estão no mapa”, que será lançado em 2018).



Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Trending Articles