INEXORÁVEL
nascem caminhos tortuosos
taquicardias inevitáveis
orgasmos e amoras
azedas
ser transitório
no teatro dos vivos,
é fazer perdurar o fogo
sem roteiros previsíveis
no teatro dos vivos,
é fazer perdurar o fogo
sem roteiros previsíveis
qual a brasa intensa
no corpo mundano
do cigarro
no corpo mundano
do cigarro
corroendo,
aos poucos,
o carbono do alcatrão
aos poucos,
o carbono do alcatrão
eis a morte:
Luz indecifrável
emana a necessidade latente
de fazer da vida o brilho vívido
que pode, inevitavelmente,
de fazer da vida o brilho vívido
que pode, inevitavelmente,
cessar
INUTENSÍLIO
são inúteis os poemas
sem validade financeira
diante dos investidores
são inúteis os poemas
sem validade financeira
diante dos investidores
afoitos
e no fundo,
assim é melhor:
sem pragmatismo
assim é melhor:
sem pragmatismo
o arrebol lilás
o orgasmo selvagem
ou um gol - nos acréscimos
o orgasmo selvagem
ou um gol - nos acréscimos
não devem ter razão de ser
pois toda poesia
é uma palavra
é uma palavra
grávida
áspera,
qual pedra
qual pedra
na garganta
transita inquieta
no limiar da loucura
no limiar da loucura
em movimento
no âmago
no âmago
do ser
eis o poema,
um inutensílio:
um inutensílio:
avesso às certezas
fabricadas por homens
fabricadas por homens
que fodem com números
DESPATOLOGIZAR
a fumaça do que penso
nem sempre sublima
nem sempre sublima
fica: permanece
até sangrar
na noite
até sangrar
na noite
fosse menos severo
escreveria mais azul
dançaria qual fêmea
escreveria mais azul
dançaria qual fêmea
à revelia das normas
convenções dogmas
convenções dogmas
até nascer o poema
calmo e livre
calmo e livre
arrebol
distante do diagnóstico
que diz ser transtorno
a orquídea
que diz ser transtorno
a orquídea
presa ao meu sexo
VONTADE DE POTÊNCIA
em vão os homens cercam-se de mortos
tragédias, angústias e seguem caminhos
povoados por tristeza, cinzas e incerteza;
tragédias, angústias e seguem caminhos
povoados por tristeza, cinzas e incerteza;
mas Renoir não pintou em preto e branco
e Miró, com a tinta pulsando nos poros,
não mesclou cores vívidas para sucumbir
diante dos exércitos que nos entristecem
e Miró, com a tinta pulsando nos poros,
não mesclou cores vívidas para sucumbir
diante dos exércitos que nos entristecem
o canto do bem-te-vi insiste em recordar:
há ainda tempo de resistir aos vendavais
deixar a resignação aos espíritos turvos
há ainda tempo de resistir aos vendavais
deixar a resignação aos espíritos turvos
abrir os olhos sobre as nuvens e bradar
contra as forças que nos impedem
de ser aquilo que queremos
porque, no fundo,
morrer é simples
o difícil mesmo
morrer é simples
o difícil mesmo
é viver
A POEIRA DAS ESTRELAS
especuladores da fé e da razão:
homens, pequeninos, tão cruas
as convicções que lançam
ao vento
aparentemente opostos
há algo em comum
entre ambos:
há algo em comum
entre ambos:
o martelo das certezas
do crente, imerso na sedução dos párocos
ao ateu, poço irresoluto de incredulidade
ao ateu, poço irresoluto de incredulidade
para uns, a redenção do além-mundo
para outros, o pó que nos reduz
ao indecifrável
para outros, o pó que nos reduz
ao indecifrável
Nada
permanecem em disputa
afiando a virulência
dos dogmas
afiando a virulência
dos dogmas
o peso da incerteza, contudo,
insiste em recordar aos homens
que a dúvida é a real força motriz
diante do Mistério
insiste em recordar aos homens
que a dúvida é a real força motriz
diante do Mistério
oculto
ainda somos a poeira
na magnitude das estrelas
uma partícula ínfima no teatro
na magnitude das estrelas
uma partícula ínfima no teatro
dos deuses
ESTRANHAMENTO
confrontar o ego
desvela fissuras
no teu cristal
desvela fissuras
no teu cristal
freud chamou
inconsciente
jung disse
inconsciente
jung disse
alma
e percebes
que, no fundo,
és desconhecido
dentro de ti mesmo
que, no fundo,
és desconhecido
dentro de ti mesmo
um estrangeiro
em teu frágil
em teu frágil
corpo
RESPIRAÇÃO
Para Manoel de Barros, onde estiver.
conversa furada
intriga de mosca
homens-relógios
conversa furada
intriga de mosca
homens-relógios
nos transformam
em seres
em seres
vazios
ele era diferente
usava as palavras
para compor
usava as palavras
para compor
silêncios
títulos, publicação
rótulos, academia
rótulos, academia
no ar do pantanal
a ânsia de manoel
era para que tudo
a ânsia de manoel
era para que tudo
respirasse poesia
Ilustrações: Michal Zahornacky
Gabriel Cortilho (1992- ) é poeta, músico e professor de História no cursinho popular do IFSP, em Araraquara, no interior de São Paulo. Possui como referência a poesia de Manoel de Barros e Fernando Pessoa. Tem poemas divulgados pelas revistas O Poema do Poeta; Mallarmargens e Escrita 47 (Guatá- Cultura em Movimento). Organiza seus escritos no formato de livretos Atemporal/Cronológico (2014), Transitório (2015), A Transa dos Besouros Verdes (2016), O Poema e a Cachaça (2017) e Javali Radioativo (2017).