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Rafael Neddermeyer/Fotos Públicas |
Por uma fenomenologia do discurso corporal
em Mecânica Aplicada, de Nuno Rau
/por Alexandra Vieira de Almeida/
Não é por uma música das esferas que Nuno Rau vai se pautar neste seu livro de poemas de estreia, Mecânica Aplicada (Patuá, 2017), mas numa dissonância do corpo que foge à harmonia de uma máquina ideal como apresentada por Camões no seu Canto X, de Os Lusíadas. O grande poeta português apresentou o modelo geocêntrico da cosmogonia até então conhecido de sua época, o modelo ptolomaico, antes que as luzes de Copérnico fizessem soar o Sol como centro do universo. Nuno Rau também não vai seguir a linha mística de Dante, anterior a Camões, pois o escritor italiano buscou com sua máquina revelar a linha ascensional que levava ao Paraíso. A máquina do mundo deste excepcional escritor brasileiro é uma “subversio machinae”, como o título da primeira parte do livro entrevê.
Se por um lado não temos este plano celestial na máquina do poeta por aqui estudado, podemos perceber a grandiosidade da máquina de Camões no que condiz ao seu lado mais corporal. E é por este viés, que a poesia de Nuno Rau vai se aproximar da imago mundi de Carlos Drummond de Andrade. O nosso magnífico crítico literário Silviano Santiago percebeu na poesia de Drummond este elo com Camões ao vislumbrar nesta máquina do mundo não “...uma fórmula de equação matemática, abstrata, mas de um objeto físico mecânico...”. E, por isto, o título tão estrategicamente escolhido, Mecânica Aplicada, que remete a uma música dos sentidos, a uma prática corporal que não deixa de ter atrelada a si o discurso, o logos, uma filosofia: “Não, é só da carne que falo...” Não que este discurso tenha a profundidade aquática da metafísica, mas um “mínimo enigma”, um “mergulho áspero”.
Este “mergulho áspero” vai ser na linguagem da máquina computacional. Utilizando termos em inglês da área da informática, o poeta vai percorrer as teclas insanas do universo tecnológico. Produz um hibridismo entre linguagens em que este paraíso não se encontra num mais além, mas na presença humana que é corpo. O inferno se revela como o mundo dilacerado, fragmentado, em decomposição com a imagem da ruína. Por dentro, que é corpo, uma linguagem misteriosa, que não se decifra, em que o sentido escapa, por fora, “além do corpo”, a superficialidade, o limite, a morte. Mesmo que o poeta precise quebrar os espelhos do mundo, desta máquina do mundo virtual, irreal, que produz ilusão, e se fira nessa empreitada, refugiar-se nesta concha, nesta cápsula do corpo é uma necessidade vital.
Para Nuno Rau, esta máquina lhe produz o assombro, “o assombro do mundo”. No poema em que ele fala das imagens do trem, a velocidade faz com que ele seja incapaz de reter a nitidez. Esta analogia da paisagem retida na janela de um trem se casa muito bem com o universo tecnológico que produz passagens, relances de um sentido que se esboroa. A figura que se forma no trem é a dilaceração de uma imago mundi que se dilui no caos dos centros urbanos. A mistura entre o sagrado e o profano, o alto e o baixo, como na carnavalização bakhtiniana, comparece no poema “sábado em Copacabana” em que temos a imagem da prostituta e seus devaneios mercadológicos/eróticos/sublimes: “...Ela tem sonhos psycho em que dança/ nua com as colunas de uma igreja/ abandonada entre/ orgasmos”. Aqui temos o revés do corpo como discurso, logos, pois esta personagem, anestesiada pelo valor mercadológico, pelas moedas que adentram seus poros, demonstra uma falência do humano. A relação nirvana/gozo mercadológico só reforça esta máquina do mundo inversiva.
Paradoxalmente, em Mecânica Aplicada, deste poeta super criativo, o mundo também é feito de anacronismos, de simultaneidades que se chocam como num pub, onde é possível ouvir uma música de 1978 num local em que o calendário marca a data de 2011, como podemos perceber num de seus poemas. Esta “fratura” do mundo torna possível um jogo de espelhamentos invertidos, em que a partir de uma imagem é possível construir os vários linksentre culturas, tempos, pessoas diferentes de várias gerações. Por isto a dificuldade de reter a tapeçaria visual do mundo com nitidez, pois a diversidade que adentra a carnalidade dele faz da imago mundi a própria estrutura do símbolo que se desmancha no ar. Esta é a outra imagem da máquina do mundo, não a virtual, superficial e mercadológica, mas que reflete a linguagem do corpo, produzindo-se, assim, uma fenomenologia do discurso corporal.
Mas este discurso tem de ser bem medido, exato para que o transbordamento não produza seu oposto que é a dispersão, a falta de sentido: “são signos sobre signos sobre signos/ soterrando os sentidos”. A explosão dos sentidos acaba nos desviando da concentração do sentido. É preciso impor um limite para que o sentido não se perca. É necessário um esvaziamento, uma contenção, para que o caos não se instaure. Este dentro, que não é interioridade, mas corpo, carne com ideia, logos, não precisa beirar às raias de uma alucinação. O corpo não deve ficar doente. É preciso uma dose, um remédio linguístico que lhe cause o equilíbrio. Por isto o recurso ao soneto em várias partes do livro instaurando um estabelecimento entre o racional e irracional, o formal e o ideacional.
A deterioração, a efemeridade, as cinzas se reparam com a face da construção, da elaboração linguística a partir de belos sonetos estruturados por Nuno Rau. Ele nos faz lembrar Augusto dos Anjos que, ao mesmo tempo em que apresentava um padrão formal clássico, utilizava um conteúdo que fugia à sublimidade das grandes composições. Nuno diz num de seus sonetos: “a forma fixa, o conteúdo não”. Ele não nos apresenta uma máquina do mundo imóvel, mas em moto contínuo. Se a vida se apresenta em seu esfacelamento, em seu caos, porque não reter esta insanidade na forma poética? Esta é a lição que nos é apresentada neste belíssimo livro de Rau. Como numa dança dos dervixes girantes em que temos a imitação do movimento dos planetas ao redor do sol, em Nuno Rau temos o apuro com o movimento, com o ritmo, a intensa proeza em unir a diversidade (os planetas) em torno de um núcleo coeso (o sol). A unidade temática do livro é espetacular - é este o outro sentido que não causa a dispersão dos versos bem concentrados deste poeta fabuloso.
No epílogo, o poeta termina com um soneto, a máquina da escrita, utilizando a forma exata com uma linguagem insólita. Este “infinito motor” nos faz vislumbrar a beleza que se esconde em suas dobras. Em Nuno Rau, encontramos um deserto tecnológico com suas miragens em busca de um oásis que não existe. A salvação e a libertação estão na linguagem poética que solta as amarras do corpo para desbravar esta “floresta de símbolos” em que as metáforas se desgarram de seu sentido originário, levando o leitor a questionar sua zona de conforto e revelando um autor conhecedor da pluralidade simbólica, conceitual e formal de sua verdadeira técnica. Aqui, temos um autor que realmente nasceu para permanecer.
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Outras resenhas de Mecânica Aplicada:
- na revista Diversos Afins, por Roberto Dutra Jr.: aqui.
- no blog de André Merez, pelo próprio: aqui.
- no blog Ambrosia, por Fernando Andrade: aqui.
- no blog Croqui, por Thiago Scarlata: aqui.
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Alexandra Vieira de Almeidaé poeta, contida, cronista, resenhista e ensaísta. É Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Trabalha como professora na Secretaria de Estado de Educação e tutora de ensino superior a distância na UFF. Publicou quatro livros de poesia: "40 poemas", "Painel" (Multifoco, 2011), "Oferta" (Scortecci, 2014) e "Dormindo no verbo" (Penalux, 2016). Neste ano, publicou seu primeiro livro infantil, "Xandrinha em: imaginação de criança" (Penalux). Publica suas poesias em antologias, revistas, jornais e alternativos por todo Brasil e também no exterior. Tem poemas traduzidos para vários idiomas. Tem um blog de literatura: Malabarismos Poéticos.