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Grafar o silêncio, eis a tarefa diária : Airton Souza resenha Daniel da Rocha Leite

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Grafar o silêncio, essa ágrafa palavra, que tem sobre si a possibilidade do nada e do tudo ao mesmo gesto. Ir ao extremo de uma palavra que não cala sobre qualquer dobra. Grafar o silêncio, reproduzir o nada ou o além-nada foi o grande desejo de muitos escritores. O silêncio, na página em branco, é antes de qualquer verbo, a possível (r)existência. Deus, por meio de seu discurso onipresentemente sonoro, consolidou a escuridão, a luz e o verbo para o princípio de tudo. O poeta, com sua escritura produziu frente à revelia disso tudo, o silêncio como o princípio, mesmo antes da escuridão, da luz e do verbo divino.

Aguarrás, de Daniel da Rocha Leite, chegou as minhas mãos, como chegam às boas marés de fim de tarde, atravessando distâncias que sempre quer nos silenciar, mas que o afeto que temos um para com o outro é a única cura possível. Dessa parte dos trópicos, esse livro-poema, veio aplacar sutilezas para esses olhos que por momentos estão incrédulos.

Perante nós, as páginas de Aguarrás possuem espaçamentos silenciosos que talvez (isso é só uma suposição), falam um pouco para além de seus próprios signos linguísticos. Daniel da Rocha Leite parece nos mostrar a lição de como silenciar um livro, deixar a palavra e sua representatividade no estado selvagem mudez, desbastando-nos.

Há uma intensidade poética no fosso da linguagem de Aguarrás que nos assusta. Principalmente, aos que tiveram contato até hoje somente com as obras, do gênero prosa, publicadas por Daniel da Rocha Leite, entre romances, crônicas, contos e livros infanto-juvenis. Não que essas obras não contivessem poéticas, pelo contrário, sempre foram mais poéticas que prosaicas. Porém, a poética em Aguarrássão de outras desconstruções; outros rumos, desertos, rios, mares e marés.

Em Aguarráso silêncio é a forma humanamente sentimental que Daniel da Rocha Leite encontrou para suplementar e, nunca complementar, (porque isso invoca uma lógica e outras verdades), o deserto, o abismo e a palavra.

Poucos livros na poesia brasileira (disso eu tenho certeza) deixaram os vazios das páginas tão imensamente mergulhadas em um silêncio como o fez em Aguarrás,Daniel da Rocha Leite. Esse livro-poema tem em suas páginas um movimento linguístico muito significativo para o processo de compreensão semiótico do que pode um poeta fazer com e nas páginas de um livro de poemas que ser quer silenciosamente silencioso. Não de graça o poema que abre o livro possui os dois versos finais muito emblemáticos.  Veja o que nos diz a escritura do poeta Daniel da Rocha Leite:

***
dissolve o teu deus do meu eu
reescreve-me nesse silêncio incapaz
***   

Reside nesses versos o plasmar da escuridão, da luz e do verbo manuscritos pela garganta de Deus. Reescrever é a tarefa que cabe ao poeta, abrir saídas, cerzir outros gestos, outras maneiras de nos mostrar que são de multiplicidades e rasuras que se faz o mundo.

            As metáforas empregadas em Aguarrás,em tornodo diálogo-silêncio, possuem intensidades poéticas, que mesmo com quase vinte anos lidando com a matéria poesia, me deixaram profundamente comovido. Para ficar em algumas exemplificações:

***
o teu silêncio
            cavalo que avança dentro de meus olhos
***
peso da palavra durante o silêncio
***
a palavra aos pés do silêncio
***
esse silêncio plantado na pedra do porto
            ***

Vale lembrar que o poeta não deseja salvar ninguém dos sinos de silêncios porque sempre caem os pássaros em um desconhecido deserto a deriva e o tecido do mundo ainda é feito do corpo, de sangue e de palavra. Caracteristicamente, Daniel da Rocha Leite nos sugere que o silêncio é a antipalavra, eu penso que esse seja também o antigrito para além da verdade bíblica.

No entanto, em Aguarrás há outras geografias, entre elas: Portugal e a Amazônia; há outras temáticas (o corpo// a carne//o sangue//a liquidez), outros sons, viscerais por sinal (por exemplo: sudário solidão//palavra em escuridão/palavra em floração/palavra em erupção), outras maneiras de ler, seja por meio do poema-livro ou esparsamente poema a poema sem o conceber como um corpo sem órgão, a que se refere Deleuze Guattari. Aqui está uma das maneiras que escolhi para naufragar em Aguarrás.

É sempre bom finalizar com outras significarias. Assim, diz o eu-lírico de Aguarrás:

***
trago algo da tua saliva
sete lâminas do silêncio
***



Airton Souza– é poeta, professor, ativista cultural e leitor. Possui vinte e sete livros publicados. Vencedor de alguns prêmios literários, entre eles o III Prêmio UFES de Literatura, IV Prêmio Proex de Arte e Cultura e o Prêmio Dalcídio Jurandir 2013. É licenciado em Letras – Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, licenciado em História, pelo Centro Universitário Leonardo Da Vinci e, é mestrando em Literatura, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará – UNIFESSPA.




Daniel da Rocha Leite– é advogado e licenciado pleno em Letras, com habilitação em Língua Alemã. Mestre em Comunicações, Linguagens e Cultura, pela Universidade da Amazônia e doutorando em Estudos Comparatistas na Universidade de Lisboa. Recebeu em 2007, o Prêmio Carlos Drummond de Andrade promovido Sesc – DF. No mesmo ano foi finalista do Prêmio Machado de Assis pelo Sesc – DF. Por quatro vezes venceu o Prêmio IAP, promovido pelo extinto Instituto de Artes do Pará. Com o romance Girândolas, venceu o Prêmio Samuel Wallace Mac-Dowell, da Academia Paraense de Letras, em 2009. É um dos mais premiados autores paraenses. Possui dezesseis livros publicados entre poesia, contos, crônicas, romance e literatura infanto-juvenil.

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