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7 poemas de Sândrio Cândido

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Deitei os pés no silêncio
viajei quilômetros dentro da linguagem
deixei no caminho carcaças
barcos que foram e que já não são.
Tratei de inventar na palavra a torneira,
Tateando a costura das estrelas caídas.
Lambi uma nuvem anoitecida.
Remendei sacrários escrevendo poemas
deitei os lábios no silêncio.
No fundo da dúvida abraçou-me o caminho
grávido de tambores chorei!

*** 

Essa greta aberta na realidade, esse desvio,
essa ínfima janela despindo os olhos
arrancando as escamas
deitando as pálpebras da noite
sob os barcos, sob o caos,
neste lugar onde já nada acontece.

Nenhuma explicação, nenhum desvelar,
sem esperança, sem preces,
somente acolher o íntimo das coisas,
sem pergunta, sem exclamação,
apenas a consciência de ser no agora.

Por um instante recolher a esperança
deitar a mão no interior do crepúsculo
apanhar  nas estranhas algo do Gênesis
habitar quieto o sopro da realidade.

*** 

Houve uma planta no sonho do lavrador,
o primeiro exercício do acolher.

Foi bem antes!
por ela atravessou sequidões
o lavrador. 

Rompeu córregos
chupou cactos.

Ninguém ousava confiar-lhe
quando dias e noites ele lhes contava
do campo aberto em seu sonho.

Todos os dias ele sentava no meio,
perdido na tarde imensa,
e ficava a ouvir o sonho.

ele dizia:
um dia choverá
e as sementes vingarão!

era tudo poeira
barroca!
Um chão apodrecido.

Só o lavrador confiou! 

Passou noites arando a terra,
jogou as sementes
demorou na esperança...

Quando daquele monturo
a planta de borboletas brotou,
espantados vieram todos
exceto o lavrador,

ele já à conhecia
muito antes, no próprio sonho.

Sem nenhum espanto,
trazendo em mãos uma corda antiga
ele veio devagar
e se dependurou nos galhos
ali ficou balançando.

Do seu interior foi brotando
um córrego imenso de cigarras.




Longe é muito tempo
devagar no exílio andamos
existimos de decorar
por o coração no silêncio
salvar na noite a borboleta
antes do naufrágio
impedir o aborto das cigarras
é esse o mistério:
piano esfarelando o tempo.

***

Naquele tempo eu pedia a benção da vó
um arranjo de chuvas me alumiava os olhos
tudo era belo
e um bosque de risos me crescia.

O sol entornava calor em mim
Até uma moça aconchegar-me os olhos
nos lábios dela peneirei o horizonte

Vovó olhou meio de soslaio
disse que o amor era coisa de viajar.

Fiz caminho no coração dela
andei devagar por medo da erosão
enxurradas de silêncios domaram
estradas que eu levava por dentro.

Vovó era entendida de viajar em outros
anos percorreu pelo corpo do esposo
tanto que deles um altar nasceu
batuque úmido ofertado aos deuses.

Na canção que era para a minha ciranda
chamei a bailar os lábios da moça
ficamos feito encantados de cigarras
bebendo nela um córrego de nuvens.

Vovó abaixou meus olhos na solidão
quando borboleta voou para outras praias
antes me contou de outras viagens
de eu e a moça sermos entrelaçados.

Dos lábios da moça a viola em mim
foi sopro aliviando das andanças a saudade
somente nela entendi as paisagens
até ela pássaro fazer ninho no alto. 

De novo a solidão ajoelhou meu vocabulário
da vovó e da moça esse amor que fomos
viagem embarcada em rio que deságua
nos olhos que esmolam eternidades

Da vó e da moça o pretérito fincado
no coração que deixo em cada poema
só a linguagem é o que resta
abraçando na noite a minha tristeza.

***

Meus ancestrais conheceram a senzala
moraram debaixo dos açoites
foram tidos como filhos do nada.

Quando lhes falavam de deus
era outra forma de domesticá-los.
O deus deles, ao contrário,
era uma orquestra de tambores
e não morava nos céus,
morava ali mesmo, em seus corpos,
resistindo dolorosamente.
Hoje também resistimos,
não apenas aos açoites,
também a essa linguagem chicote
da qual seguimos apanhando.

***

Foi vovó quem me ensinou a debulhar memórias
sentada por dentro do pôr do sol
ela olhava o longe de antes
falava dos cabelos empoeirados do bisavô
das mãos calejadas colhendo a música
das costas marcadas pelo dono das canas
ela tinha um olho engoiabado
uma árvore de orvalhos onde eu descansava
um dia ela chorou um rio de dores
pariu uma andorinha errante
foi vovó quem me contou das terras roubadas
dos gritos calados nas senzalas
da história que a escola não aprendeu a ensinar
ela nunca soube ler um evangelho
mas sabia de cor o começo da chuva
falava de um pão doido
que a gente trazia de outras décadas
vovó morreu deitada no silêncio
engolindo no meu peito os crepúsculos
plantou em mim uma fogueira
nasceu borboleta na terra prometida.


Galeria: Cril Ranay



Sândrio Cândido (Minas Novas, MG, 1991), é afrodescendente, poeta e missionário católico.  Estudou filosofia pela faculdade vicentina. É autor de Epifania (Editor Patuá, 2014).  Atualmente reside na cidade de Cali (Colômbia), onde estuda teologia e trabalha com a Pastoral Afrocali. Sandriocp@yahoo.com.br

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