Saramboke: a pátria ontológica e mítica, a morada poética e onírica de Elizeu Moreira Paranaguá. A casa, o berço – da palavra, da existência – onde paredes e telhados, quartos e salas dão lugar à desmesura dos caminhares desencobertos, ad infinitum expandidos. Toda a voz às indagações não cerceáveis ou delimitáveis por tijolos em muros, ferros em grades. Nenhum farpado arame a impor um estado de sítio. Cama nenhuma nesses arredores de nada, para que as inquietações nunca durmam. A quietude está em seguir, seguir, entre a peripécia e a vicissitude.
As portas se encontram nas esquinas. Surgem em todas as direções. O céu tem portões. Janelas se abrem nas encruzilhadas órfãs do definitivo rumo, porque só nos provisórios quartos dos sinais de trânsito, dos signos em transe, dos atravessamentos, o movimento revela dias e noites cruzando as ruas, perquirindo o instante “onde o Sol e a sombra trabalham de mãos dadas”. Mais: onde a luz e a treva improvisam cirandas de poemas hóspedes do cosmo e do caos, inquilinos do fogo pungente em paralelepípedos, meios-fios, asfaltos.Muitas cidades confundidas em uma única praça. E há ladeiras que dão para uma estrela atropelada, gritando a poesia.
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Elizeu Moreira Paranágua |
O quarto livro de Elizeu Moreira Paranaguá – Saramboke(Editora Penalux, 2017) – ganha miragem neste horizonte: espécie de Poética do espaço, para memorar o homônimo livro do filósofo Gaston Bachelard, vez que a terra natal e espectral do poeta se põe em obra, se põe em casa sem bordas: “é graças à casa que um grande número de nossas lembranças está guardado, e quando a casa se complica um pouco, quando tem um porão e um sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais caracterizados. A eles regressamos durante toda a vida, em nossos devaneios”. Em Paranaguá, a complicação da casa é justamente a negação de um recanto firmado e seguro para o ensaio de suas manhãs, bem como para o desmaio de suas tardes.A complicação da casa é a implicação de um universo-intimidade sem lar e, contudo, habitante de toda pedra colocada sobre a mesa do mundo. A que abre a boca das estradas. Porque, no lugar de porões e sótãos, cantos e corredores, são avenidas e calçadas e vias esburacadas que o corpo andarilho percorre. Não raro,o barro do infinito tange e tinge as trilhas,em meio ao pó – sem mapas– do destino.A alma-saramboke coincide com tal diuturna romaria, peregrinação,a fim de “dominar os infernos” e “preencher as dimensões dos não-lugares de Deus”. O sangue desta poesia a conduza saídas para novas entradas.Às suspensões em becos.Aos intervalos do desassossego.Labirintos de anjos pedestres, diabos perambulantes. Nos devaneios desse regresso“ao ritmo do Mistério”, digressões ensaiam o rito dos versos livres, à revelia de imperativos técnicos e estéticos. Porque “livre”, canta um “cérebro cheio de espumas de fogo”, é o próprio “fogo / que se articula / nas entranhas / de Mariposa”.
As mariposas se diferenciam das borboletas por possuírem, dentre outras particularidades, hábitos e voos noturnos. Ademais, assim que pousam, deixam as asas abertas. A palavra errante e cortante do “vento / que desanda no pensamento” mantém-se prenhe de voo no chão notívago e boêmio de Paranaguá. Por isso, oferece-nos o poeta sempre um “poema para beber”. Há que se dizer: “beber o que há de loucura nas estrelas”; “beber o que há de ternura / na beleza terrível”. Mas não só do gosto, da textura, do aroma do álcool se vale o eu-pensador. Sua meditação, longe de meramente intelectiva, se sustenta e se abisma na realidade sensível, sensorial, do “sofrimento da flor”. Ele bebe as circunstâncias e seus sabores, sugerindo sinestesias em verbos: “vi a lua no começo do caos”; “ouço os demônios do dia”; sentindo o “céu gelado”, o “calor do Cosmos”, “entre os perfumes da variação do tempo”. Para além dos cinco sentidos, um sexto – o intuitivo – “procura algo que não se vê com os olhos”, que não se ouve, que não se tateia,que “transcende as fronteiras”, sabido de que “as auroras / golfam nas sombras / vertiginosas”. Até que um sentido sétimo se arrisque, fosse o “gozo do Ser / a perder-se no profundo”. De maneira que o sinestésico, passando pelo cinestésico, isto é, pelo cinesiológico, alcance um “dançar sem perfume”, um “dançar na margem / como um deus”.
Dança é, por sinal,uma palavra-chave neste poemário de quântica kínesis. Em O Tao da Física, Fritjof Capra nos dá indicações da essência da dança: “Há cinco anos, (...) eu estava sentado na praia, ao cair de uma tarde de verão, e observava o movimento das ondas, sentindo ao mesmo tempo o ritmo de minha própria respiração. Nesse momento, subitamente, apercebi-me intensamente do ambiente que me cercava: este se me afigurava como se participasse de uma gigantesca dança cósmica”, escreveu o físico. O poeta Paranaguá, por sua vez, “para desarticular o absurdo das ondas”, confirma a realidade como algo jamais posto, terminado, estático, mas movente e co-movente: dinâmico. Capra arremataria Saramboke: “Todas as coisas (...) são agregados de átomos que dançam e que, por meio de seus movimentos, produzem sons. Quando o ritmo da dança se modifica, o som que produz também se modifica. (...) Cada átomo canta incessantemente sua canção e o som, a cada momento, cria formas densas e sutis”. Assim, nos desígnios de uma literatura cosmogônica, tal qual a de Elizeu Moreira Paranaguá, não haveria poesia sem dança, nem dança sem poesia – a energia criadora, o nada que é tudo.
Ao construir a Teoria Fundamentos da Dança na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a professora Helenita Sá Earp propôs o movimento, o espaço-forma, a dinâmica e o tempo como parâmetros para pensar, gerar, desenvolver e diversificar as práticas corporais. Em Rudolf Laban, a análise se daria mediante a correlação “corpo-esforço-forma-espaço”, na qual “esforço” enfatiza qualidades do mover, o ritmo dinâmico, a motivação interna/externa que se manifesta na escolha de determinado movimento. Vez que o co-movido Elizeu Moreira Paranaguá se insiste perpétuo transeunte das perscrutações, sua palavra em trânsito experimenta dinâmicas, espaços-formas, ritmos-tempos, enfim, danças variadas, as quais deslocam os lugares-comuns para o delírio do sentido em que – reiteremos – o Ser goza. Retomando Bachelard, o espaço percebido pela imaginação não coincide com o espaço indiferente e cedido à mensuração e ao pensamento restrito às geometrias e arquiteturas. Trata-se, sim, de uma reflexão poética em torno do espaço vivido em todas as plagas do imaginário, de maneira que a imagem da casa – ou, aqui, do nominado Saramboke, lugar de origem– se torne a topografia, a topologia e, sobremaneira, a logotopia deste estrangeiro ser-íntimo. Nada que o restrinja a uma biografia baiana, embora dela se valha como matéria-prima para suas transmutações. Se fala, inclusive, não apenas numa Baía de todos os Santos, mas numa “Baía de todos os profanos”.
Entender a casa a-tópica e u-tópica de Sarambokecomo o paradoxal topos da alma humana é transcender o corpo na habitação metafísica dos alojamentos do inconsciente. Desse modo, Elizeu Moreira Paranaguá toma consciência, pela poesia, de si como um para além.Aprende a morar em sua abissal origem, como quem, imergindo em magma, derrama o “fogo de dentro dos dentros”. A lavavulcânica que se oculta na pedra da palavra, onde e quando, espirituoso, dançando entre tudo, o “silêncio talvez faça a festa” e os enigmas todos frequentem, no mesmo baile, a fala muda de uma interminável música.
Poeta, ensaísta e professor de Filosofia, Estética e Dança na UFRJ. Doutor em Poética pela UFRJ. Autor, entre outros, do livro Poética na incorporação – Maria Bethânia, José Inácio Vieira de Melo e o Ocidente na encruzilhada de Exu (Penalux, 2016).