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9 poemas de Luciana Barreto

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Man Ray


FIM DA LINHA

Não, não percebi que já chegara de partida
Não, não vi em suas mãos o lenço de despedida
Não, não divisei em seus olhos os passos apressados
Não, não antevi em seus beijos acenos encenados

Não, não segui em sua palma a linha evadida
Não, não li suas palavras com vieses e adeuses
Não, não senti no canto a lira da sereia
(em ti notei apenas delicada poesia)

Não, não entendi no corpo a fuga o aviso
Não, não acolhi seus braços como laços desfeitos
Não, não percorri em vão as costas da ausência
Não, definitivamente não o sabia de passagem
(hoje túnel a atravessar-me longo constante lento)

Não, não amei só de brincadeira
Nos trilhos me estendi inteira
E no fim da linha ainda treme entre meus dedos
a viva, acesa e absurda flor do sonho.



AREIA E VENTO

Ah, se te soubesse de areia e vento
bateria a porta, selaria as frestas
impediria com pedras tapume cimento
esse pó que invade que cega
calcária luz
branco tormento.

Ah, se te soubesse de fuga e vento
cobriria lustres espelhos
impediria braços beijos
e com tiras de linho
salvariaum a um meus olhos:
hoje retina queimada
impossível, perdida morada.

Ah, se te soubesse de água e vento
faria-me barco sopro
corpo vela
e vestida de algas anêmonas corais
Vênus devastada de lua
livre e náufraga partiria
ao céu de águas, dourada ilha
de novo fuga, areia e vento.




GIRASSÓIS NOTURNOS

Assim como Ícaro se lança aos céus
eSísifo insiste cume acima
(des)asas declinam
desatinam alturas

(teço desteço a espera infinda
radiosa Penélope amorosa e bela)

Pois diurna me faço
puras flores lençóis
e sábia – serena – aguardo silente
os cálidos e acesos
girassóis noturnos.

Man ray


NOME

Minha dor tem um nome
Secreto nome que me arde os olhos
Abafado nome que me calcina o peito
- Apagado sol que refulge luas.

Minha dor tem um nome
Nome guardado no escuro da pedra
Acariciado (cândido) no rosto da noite
- Tremulada ternura em lírios incertos.

Minha dor tem um nome
No dorso do nome, tantos sonhos, ventos, estrelas
Torvelinhos que embaralham os dias, recuam o calendário
Sopram então risos-represas-meninos
E das uvas mais antigas, vicejam (por fim) as vinhas da infância.

Minha dor tem um nome
Pois na prece-febre-em-flor
(águas imemoriais, prantos tantos)
O clamor oferece-se tolo, pedinte
E a Ti – somente a Ti –
(face em fogo)
revelo o (meu) nome.




QUASE

do fulgor
candente risco
restou oblíquo
apenas isso
o olhar retrátil
a palavra fátua
e o gosto antigo
da maçã em festa




INSANO

Mais um sim que se insinua insano
E insone persigo
sinais luas sóis
- esses acesos pátios da memória.

Na hora tardia
(dura ardente nua)
Debilíssimo, insistente sino
- silêncio rasurado de vento.


Man Ray



PÁTIO

Naquele pátio murado e chuvoso
torres infindas te cindem o peito
E o coração gasto de fé
irrompe vermelho (rosa caída)
salta muros, corre ventos
escapa acelerado ladeiras abaixo.

Naquela espera compassada de Deus
a pausa trinca, a ampulheta explode
- um esplêndido susto suspende a vigília
(e a chuva cessa, e a criança regressa,
e os carneiros cruzam o traçado sagrado)

Naquele terraço agora Jardim
não mais deserto, não mais pecado.
(pergunto-lhe: para que prece?)

E sob olhos frondosos (e verdes)
a relva renasce orvalhada
os jasmins alteiam sinuosos
duplos pulsos cintilam estrelas.

Sim, basta um instante (magnífico instante)
- e o homem retoma a sua eternidade. 




PÁSCOA

A amante sem destino tinha o corpo aberto a quem passava
Entre desatinos, goles, estrelas era assim que se acendia
- depois quedava (vela extinta) lassa, gasta, exausta.

A amante sem destino com uma das mãos colhia ventos
E com a outra batia as cinzas daqueles corpos (mortos)
- ecos de carnes fantasmas escarlate. 

A amante sem destino teimava em queimar amantes
Em sua fogueira assustadas córneas alongadas tíbias
- círios de homens vivos ardidos inquietos.

A amante sem destino cumpria (solene) sua dolorosa crucis 
E em rito de fé-paixão-e-prece mirava serena a verde colina
- e sobre seus ombros a sombra grave de uma gaivota.





MINIBIOGRAFIA - Nascida em uma longínqua primavera da década de 70, na cidade de Brasília, seu irrequieto fascínio pela palavra levou Luciana Barreto, ainda muito jovem, a optar por Comunicação/Jornalismo, sua formação inicial na Universidade de Brasília. Por óbvias contingências prosseguiu a vida profissional como jornalista, mas sem abandonar o que sempre perseguiu como solo e horizonte: o desdobrável leito da literatura. Com mestrado e doutorado em Teoria Literária pela UnB, desenvolveu pesquisas nos universos de Hilda Hilst e Osman Lins, participando de congressos e publicando diversos artigos relacionados em livros e periódicos acadêmicos. O seu primeiro livro de poemas – (des)memória blues- está prestes a sair da gaveta, ainda em 2017.



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