I
era uma xícara de café sobre a mesa
no começo era só a mesa
depois da xícara
cerzida a nuvem
de botões prego gelo
num carrossel de caralinhos
que funcionava somente à noite
sementes e orvalho
de dia
depois que o sol era efusivo
e gotejava raios de prazer
era a vez dos bebedouros
em formato de bocetas
pérolas sim
como poucas
o carrossel e o bebedouro nunca se encontravam
nessa vida de distâncias
a maçã ainda era figo figa figada
II
era uma xícara de boceta sobre a mesa. ele, vestido de nero e com tara por fogos de artifício, de todos os tipos cores e tamanhos, sentia vontade de enfiar o pau numa trufa de chocolate que adornava o pirex, lado com lado, com um quindim e outras gordices; queria oferecê-lo pra ela, mas o disfarce e a fantasia imagética era dele, apenas dele; ela não dava bola para esse tipo de extravagâncias, gostava da coisa como é, carne por carne e pronto, no cheiro e com cheiro e pronto, pronto, se nada mais para o momento, pronto; ela tirava do próprio corpo, mesmo sem perceber, um ar de desmedidas para com os fetiches do corpo alheio. além do mais, não curtia chocolate, nem mesmo sorvete, ou outras guloseimas que dão cheiros sabores cores pentelhos à relação. o livro, no final do ato, permanecia - como era como veio -, fechado sobre a cabeceira ao lado da cama para servir de manual erótico para os demais participantes. participar era o que sustentava a frincha sóbria na parede.
III
grudou todas as partes possíveis do corpo no corpo dela
tava decalcado
não havia vácuo entre os pormenores
que estreitavam miolos
[faziam deles peças menores
no compasso tenso da relação]
não queria mais desgrudar
ficção fricção freaksão
e os corpos
depois do coito
em que derretiam sintonias
fluídos em torrões
suados e somados
assistiam discussões sobre
a boceta de pandora
a delícia que se tornara
no culto inculto
palavrão
IV
dos conflitos com o próprio corpo, no vácuo, mais uma do calabouço, das entranhas, do delicioso inferno rosa da boceta alheia, boceta urucum; ali, no café da casa, uma das filhas de catarina estava sentada em um banquinho; ele olhou para o banquinho com desejo que desvirtuava o apreço; a culpa, nesse jogo de olhares impróprios, da não propriedade, é sempre do banco, nunca da cadeira; e o fio do pensamento correu, de onde estava até ela; antes passou pelo corpo de outras pessoas, por uma mesa de canto bem no meio do estabelecimento, por algumas taças, por um piso de cerâmicas quadriculadas - e, importante frisar, gelado e escorregadio -, para chegar rápido e certeiro ao destino; esse fio de pensamento é uma língua intumescida, molhada, viscosa, que começa a lamber primeiro o pé do banco, o fora, aquilo que é seco, sertão, na expectativa de encontrar o dentro, a gruta, o sertão úmido e torrencial; do local em que me encontro, como um moleque brincando de pipa, puxo o fio de ideias, mas não há mais como o pensamento se acomodar; e a língua, aquela que se perdeu do corpo, sem a mesma atenção, cai sobre os telhados alheios e ali permanece abandonada;
V
uma frincha na parede
da escuta
uma brecha
uma rocha dura
uma racha
IX
- café ou chá? pediu a dona
- café
- com acompanhamento?
- o da casa
quando a publicidade
é feita de modo que convence
a palavra se esconde na fissura
do que pode e do que não (f)ode
[- café com boceta disse o moço
depois que a dona virou a curva]
cacunda todos eram gagos
e com as orelhas maiores que
o convencimento das palavras
quando se morre pelo excesso
de uso e abuso
se morre junto
sempre muito junto
pela falta
de concordância
X
grãos de uva e fatias de melancia sem sementes, mangas sem fiapo, cubinhos de kiwi na bandeja e boceta sem pelinhos; no sacramento do poder, de onde vejo vereadores pintando o fiofó antes da cerimônia, a blasfêmia era porco dioporca miséria porco fiapo. o corpo do comandante, ao invés de cabeça tronco e membros, era formado por cu cu e cu, ou, de outro modo, três cus; nem se podia dizer, com proficiência, que o comandante mor estava com o cu na mão, nem como trocadilho servia ao verso e à contracapa; na anedota, vândalo era o prefeito e baderneiros eram os legisladores. ninguém causa mais estrago ao patrimônio público do que os vereadores (deputados e afins) - oh nobre edil filha da puta, gritava catarina; que trazia no peito leite o suficiente pra sustentar os homens brancos que não trepavam com suas esposas (as mulheres das fotos sobre a escrivaninha e dos vestidos de gala gola gula), mas que pagavam horrores pelos carinhos (das moças e dos moços) nos puteirinhos de cruz e vela.
Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura e professor universitário. Publicou 15’39” [Editora da Casa, Alpendre, 2010, poemas]; Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé [Lumme Editor, Móbile, 2009, livro/ensaio]; Ares-Condicionados [Nave Editora, 2015, contos]; A de Antônia [Miríade, 2016, infantil]; No Puteiro [Butecanis Editora Cabocla, 2016]; mais alguns discos e alguns filmes. Vive em Florianópolis-SC.