ATÉ SEGUNDA ORDEM | ||
Paulo Henriques Britto |
POWELL, Mark - Envelopes (623)
(10 de outubro) | |
Até segunda ordem estão suspensas todas as autorizações de férias, viagens, tratamentos e licenças. É hora de pensar em coisas sérias. Deve chegar mais um carregamento até o dia quinze, dezesseis no máximo. Fui lá em Sacramento, mas não deu pra encontrar com o tal inglês — será que alguém errou o codinome? Confere aí com quem organizou o negócio todo. Bem, amanhã a gente se fala, que agora a fome está apertando. (Ah, o padre adorou o canivete suíço de Taiwan.) | |
RUSH, Chris - Java Mail
(9 de novembro) | |
Tudo resolvido. O campo de pouso até que é razoável. Mas o tal de Carlão, hein, vou te contar. É nervoso, não sei; parece que sofre de mal de Parkinson, ou coisa que o valha. Mas isso é o de menos. O pior é que o “Almirante” desde terça tomou chá de sumiço. Não sei que fim levou; é preocupante. Chegou a encomenda de Lisboa. O número é 318. A senha: “O olho esquerdo de Camões não vale uma epopeia.” (Essa é boa!) Não aguento mais ter que jantar biscoito. No mais, tudo bem. Aguardo instruções. | |
POWELL, Mark – Envelopes (613)
(21 de dezembro) | |
Sim, recebi a carta do João. Só que o seu telefonema da sexta já havia alterado a situação completamente. É, o Bento é uma besta, mas você, também... Nessas horas é que se vê que falta faz um profissional. Você nunca vai ser como era o Alex. Mas deixa isso pra lá. O principal é que o negócio está de pé, ainda. O que não pode é pôr tudo a perder a essa altura do campeonato. Não diga nada, nada, à dona Arminda. Toma cuidado. Conto com você. Aguarde o nosso próximo contato. | |
POWELL, Mark – Envelopes (2)
(12 de janeiro) | |
Por quê que ninguém me deu um aviso? Pra quê que serve essa porra de bip? Assim não dá. Que falta de juízo, de... de... sei lá! Eu lá em Arembipe dando duro, e vocês aí de pândega! O deputado, é claro, virou bicho, e não vai mais ajudar lá na alfândega. Meses de esforço jogados no lixo! E agora? E o alvará do “Três Irmãos”? E os dez mil dólares do Mr. Walloughby? Não vou nem falar com o doutor Felipe. Vocês que aguentem o tranco. Eu lavo as mãos. Se alguém me perguntar, eu tenho um álibi perfeito: “Eu estava lá em Arembipe.” | |
POWELL, Mark – Envelopes (511)
(19 de janeiro) | |
Até esta chegar às suas mãos eu já devo ter cruzado a fronteira. Entregue por favor aos meus irmãos os livros da segunda prateleira, e àquela moça — a dos “quatorze dígitos” — o embrulho que ficou com o teu amigo. Eu lavei com cuidado o disco rígido. Os disquetes back-up estão comigo. Até mais. Heroísmo não é a minha. A barra pesou. Desculpe o mau jeito. Levei tudo que coube na viatura, mas deixei um revólver na cozinha, com uma bala. Destrua este soneto imediatamente após a leitura. | |
(originalmente publicado em Trovar claro, 1997) |
PAULO HENRIQUES BRITTO | |
Nasceu no Rio de Janeiro em 1951. É tradutor e professor de tradução, criação literária e literatura na PUC-Rio. Publicou os livros de poesia: Liturgia da matéria (1989), Mínima lírica (1989), Trovar claro (1997), Macau (2003, Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira e Prêmio Alceu Amoroso Lima), Tarde (2007, Prêmio Alphonsus de Guimaraens) e Formas do Nada (2012); e um livro de contos: Paraísos artificiais (2004, segundo lugar, Prêmio Jabuti), todos editados pela Companhia das Letras. Como tradutor, no campo da ficção destacam-se suas traduções de Henry James, William Faulkner, V. S. Naipaul, John Updike, Philip Roth, Thomas Pynchon e Don DeLillo; na poesia, traduziu, entre outros, Lorde Byron, Wallace Stevens, Elizabeth Bishop, Allen Ginsberg e Ted Hughes. E-mail: phbritto@hotmail.com | |