*
eu vejo cabelos brancos
na fronte do artista
cometeu muitas
revoluções, canalha?
estuprou muitas palavras?
roeu a corda toda
do sentido?
passou noites e noites
dentro do inferno branco?
lutou contra os medíocres
mas eles eram teus reis?
comeu a própria língua
até estar deserto de si?
eu sei que te seguem
passo a passo
eu sei dos que desejam
te cegar
mas o sol da tua boca
permanece
e como um cancro
um canto um furúnculo
ele ainda há
de germinar
*
Explicação
quando o avião
caiu e explodiu
de bico no chão
todos os corpos
foram compactados
na cabine do piloto
e incinerados juntos
foi assim que
o lábio inferior
da aeromoça morena
veio fundir-se ao meu
*
sei todo o mistério de um cão:
ser sem saber o que se é
jamais carecer da razão
e estar onde o corpo estiver
sentir o presente no vento
a simples vitória de ser
o que não sabendo do tempo
jamais saberá do morrer
são deuses portanto: ou quase
são anjos possíveis sem asas
quasares que cabem em casa
em olhos silêncios ciladas
sei todo o mistério de um cão
e sei que ainda sou nada
*
acaso eu me fizer estorvo
em emaús, a estrada segue
acaso caia a casa sobre nós
e toda a aldeia se incendeie
a estrada segue
acaso
a própria estrada vire nada
pó de poeira passada: segue
é nosso este futuro, esta asa
nesta pedra: voa, febre
*
são todos negros
são todos brancos
são todos cegos
são todos mancos
são todos velhos
são todos tantos
são todos erros
todos humanos
*
Casamento
devorou a noiva
devorou o padre
e os padrinhos
palitou os dentes
com o broche
da futura sogra
limpou a boca
e as mãos vermelhas
na toalha do altar
saiu assoviando
a marselhesa
em tom de samba
*
respiro a teu lado no elevador
enquanto tento disfarçar o fato
de que não passo de um minotauro
entre teu perfume e a gravidade
só parte do que sou é que respira
movente imóvel neste ar quadrado:
meu outro lado só espreita a presa
enquanto se prepara para o salto
que não virá: nós dois estamos presos
nesta armadilha vertical e burra
(não este elevador mas a cultura)
antifontana de qualquer desejo
a porta abre em teu andar agora
e para sempre eu nunca mais te vejo
*
Carlos Moreira nasceu em 1974. Publicou os livros Tetralogia do Nada, Cardume e Corpo Aberto. Os sete poemas acima são do livro O Lado de Fora do Dentro, sem previsão de lançamento.
Etiquetas: 2017. Carlos Moreira mallaramigo poemas vol 6 num 1
Etiquetas: 2017. Carlos Moreira mallaramigo poemas vol 6 num 1