Tudo começa no puteiro da Catarina, “a vizinha de tamanco / do livro ao lado” onde “os porcos sorriam / e batucavam fezes”. É neste cenário de linguagem apresentado sob a epígrafe de Deleuze (“Mesmo as palavras se comem”), que Demétrio Panarotto atribui à linguagem sua faceta mais promíscua. O prostíbulo de Catarina, versejado em No Puteiro (Butecanis Editora, 2016), dá o tom de por que caminhos o autor catarinense nos levará com suas páginas. A linguagem (e nela a poesia) permite que nos indaguemos, em determinado momento, se é de fato um bordel ou uma biblioteca esta propriedade catarinense — e, sendo assim, se seriam realmente distantes uma coisa da outra, mas aqui especulo — pois se para os esforços de Catarina “a recompensa era o verso”, por que então a pobre “caída e carcomida pela leitura sorvia o / corpo que lhe agenciava a vida”?
É preciso especular mais e dar caminho para este texto, escrito no calor da leitura: esta Catarina, puta, só pode fazer referência antagônica a uma outra, conhecida à luz do dia, de prenome Santa e que todos sabemos (sabemos?) onde fica. E se não sabemos, tanto faz: o que aqui acontece não é geografia política. Da poesia de Demétrio, para além dos significados oficiais (embora oriundo deles), surge uma Catarina-cafetina que nem mesmo nós, habitantes deste estado da federação, estamos acostumados a assumir e a aceitar: este estado em que cantam “os sapos / concerto + ou – grosso / burp burp burp” e que é agora reapresentado e reaprofundado no livro Café com Boceta (Butecanis Editora, 2017), segundo volume de uma trilogia necessária.
Café com Boceta não mede pudores e não se permite os conservadorismos da língua (portuguesa), e esse é um ponto importante a se levar em conta antes de se deparar com a poesia de Demétrio. Aqui “ficção fricção freaksão”. E as imagens de um café com boceta servidos à mesa por Catarina, a santa puta do livro anterior, dividem espaço com a fala de dentes cerrados (talvez a única maneira de pronunciar tais palavras) em trechos de versos longos e vitoriosos, em que o poeta expõe a realidade de seu entorno neste estado em que a santidade é um pressuposto. Não são poupadas as personalidades políticas:
não sei se há outro estado da confederação em que todos os governadores, sem exceção, foram uns merdas; nem o estado de espírito nesse momento pode ser considerado
os poetas oficiais:
viu vós vozes veladas vozes vaginas, dizia o arremedo de poeta do busto sagrado, em um dos eventos na casa do governador (ele era amigo do governador, jantava com o governador, tomava banho com o governador, dormia com o governador)
ou a santa, outra:
convidaram a madre paulina pra dançar no puteiro; de espartilho vermelho, tamanco taco alto, rosa amarela na orelha, ao som de uma polca paraguaia, só aí o puteiro estaria completo.
Demétrio desmonta, página a página, a imagem turística e a linguagem publicitária (enganosa, quase sempre) pela qual Catarina (a santa, não a puta) é sempre tão conhecida nacional e internacionalmente. Acontece algo aqui. Algos. E a dor surge ora na figura dele “vestido de nero e com tara por fogos de artifício”, ora na figura do poeta oriundo deste estado em que eles “faziam vídeos abanando as rosinhas e cantando hinos de louvor aos mortos: epitáfios: tu não é catarinense?”
E deve ser perguntado, reperguntado, novamente questionado (e depois de novo): o que é isso de ser catarinense? Ou a pergunta muda de tom e interroga: que modo de ser (poético ou não) é possível nestes quilômetros (tão) quadrados da federação?
Ou ainda, numa provocação direta: o que é ser poeta neste “estado de merda”?
Se Demétrio consegue responder a essas perguntas, eu deixo a dúvida posta à mesa para o leitor, agora servido do seu próprio Café com Boceta, novamente apresentado pela Butecanis Editora Cabocla— que faz livros a facão, como se diz na gíria (des)territorializada destes cantos do território (ainda) nacional [venham pro pau, separatistas!]. Venham pro pau escritores oficiais, mamadores das tetas do governador, amantes das primeiras, segundas e terceiras damas oficiais. Café com Boceta está sem açúcar e a linguagem nada tradicional desta resenha menos tradicional ainda só foi permitida a) pelo excesso de café, b)pelo cão da vizinhança que não para de ganir e c) pelo incômodo causado após a leitura deste volume preciso de versos livres e que ousam a liberdade, escritos por Demétrio Panarotto, poeta forte, contista que dá porrada, rockeiro de balde do oeste do estado e sabe-se lá o que (tudo) mais.
Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura e professor universitário. Publicou 15’39” [Editora da Casa, Alpendre, 2010, poemas]; Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé [Lumme Editor, Móbile, 2009, livro/ensaio]; Ares-Condicionados [Nave Editora, 2015, contos]; A de Antônia [Miríade, 2016, infantil]; No Puteiro [Butecanis Editora Cabocla, 2016]; mais alguns discos e alguns filmes. Vive em Florianópolis-SC.
Marcelo Labes nasceu em Blumenau-SC, em 1984. Autor de Falações [EdiFurb, 2008, poemas], Porque sim não é resposta [Antítese, Hemisfério Sul, 2015, poema], O filho da empregada [Antítese, Hemisfério Sul, 2016, poema] e Trapaça [Oito e Meio, 2016, poemas].