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Ilustração: Marie Cerminova Toyen |
1.
arrancar da matéria fria
o último bafo de vida
o último bafo de vida
somos poeira cósmica
escravos da lógica
escravos da lógica
escrever um poema é
desentranhar um poema
desentranhar um poema
dessa derradeira tábua
de salvação das invenções
de salvação das invenções
chamada imaginação humana:
arquitetura das constelações
arquitetura das constelações
5.
uma sonda lançada ao espaço
para capturar o som da lacuna
entre Saturno e seus anéis
rodopiou durante meses
envolta em partículas de gás
perscrutando uma espécie
de paisagem sonora
buscando em vão algo
além do aterrorizante
som do vazio
para capturar o som da lacuna
entre Saturno e seus anéis
rodopiou durante meses
envolta em partículas de gás
perscrutando uma espécie
de paisagem sonora
buscando em vão algo
além do aterrorizante
som do vazio
10.
o mar
devia ser o mar ali
a assomar à porta
de nosso entendimento
devia ser o mar ali
a assomar à porta
de nosso entendimento
a entupir de sal a
garganta de nosso tédio
a estourar o gargalo
de nosso recato
garganta de nosso tédio
a estourar o gargalo
de nosso recato
o mar
devia ser o mar ali
a espalhar a espuma
de nossas derrotas
devia ser o mar ali
a espalhar a espuma
de nossas derrotas
a espatifar nossos corpos
contra o enfático silêncio
das pedras, contra o desespero
de nossos gestos atrasados
contra o enfático silêncio
das pedras, contra o desespero
de nossos gestos atrasados
devia ser o mar ali
a roçar nossos pés
devia ser o mar
ou quem mais suportaria
assim a luz de maio?
a roçar nossos pés
devia ser o mar
ou quem mais suportaria
assim a luz de maio?
26.
(desentranhado de um livro da Svetlana Aleksiévich)
os cabelos são os
primeiros a enlouquecer
os cabelos ficam loucos
antes de você, sabe?
não há meios de os pentear, eles
simplesmente enlouquecem
depois são ondas térmicas que descolam
sua pele da carne, ossos desatados
numa independência
forçada e tardia
aí então sua espinha tensiona como
um arco
primeiros a enlouquecer
os cabelos ficam loucos
antes de você, sabe?
não há meios de os pentear, eles
simplesmente enlouquecem
depois são ondas térmicas que descolam
sua pele da carne, ossos desatados
numa independência
forçada e tardia
aí então sua espinha tensiona como
um arco
como um elástico esticado
até que você finalmente desapareça
que se torne um asco um trapo um saco
atirado no canto do quarto
até que você chegue a este lugar
é assim: os cabelos antes, depois o corpo todo
o corpo, a última evidência do exílio
até que você finalmente desapareça
que se torne um asco um trapo um saco
atirado no canto do quarto
até que você chegue a este lugar
é assim: os cabelos antes, depois o corpo todo
o corpo, a última evidência do exílio
Poemas do livro, A arquitetura das constelações, a sair ainda no primeiro semestre de 2017 pela editora Patuá.
Fotografia Maurício: Diego Ciarlariello
Mauricio Duarteé jornalista, autor dos livros de poemas Balde de água suja (Patuá, 2015) e Rumor Nenhum (7Letras, 2007, coleção Guizos), e um dos autores de Haja Saco, o Livro (Multifoco, 2009), baseado em blog homônimo e já extinto. Vem publicando nas principais publicações literárias do país, como as revistas Cult, Lado7, Inimigo Rumor, mallarmagens, entre outras. Nasceu na capital paulista em 1981.