A escrita de Maria da Conceição Paranhos pode ser compreendida em um contexto maior de sobrevivência da lírica na poesia brasileira, não exatamente por rejeição às vanguardas, mas por assimilação daquilo que nelas lhe interessava, sem perder o caráter discursivo. Seu caso, aliás, é dos mais emblemáticos, pois o segundo livro da autora,ABC re-obtido, de 1974, dialoga francamente com o Concretismo e com a forma popular do ABC, espécie de cordel em que cada letra do alfabeto inicia um poema. Se pensarmos, por exemplo, que um poeta como Ferreira Gullar, depois do Neoconcretismo, entregara-se ao panfleto no final da década anterior, com seus Romances de cordel, o ABC Re-obtido cresce em importância, pois sinaliza uma tendência.
Tarda muito uma poesia reunida de Conceição Paranhos, para que se possa ter a exata dimensão de sua trajetória, que os textos de apresentação do recém-lançado Poemas da rosa evocam – infelizmente, com certa exorbitância e generalidades indemonstráveis. A recepção fica ainda mais problemática tendo em vista que a única antologia individual da autora, Delírio do ver, de 2002, não é clara nos critérios de seleção, dispensa a ordem cronológica das obras e exclui, sem maiores explicações, o ABC Re-obtido.
Contudo, é pensando na poesia anterior de Conceição Paranhos, e sobretudo nesse livro banido,que as oscilações de linguagem de Poemas da rosa ressoam deliberadas. De fato, em Lição da rosa, vai dito como exposição de motivos: “Aprendo com as abelhas a escolher a flor/ das flores, a mais densa/ em seu possível mel” (p. 39). É significativo que essa busca do “possível mel” acione simbologias e dicções diversas, colocando a linguagem ao dispor do sujeito lírico que, em meio a citações eruditas, também epigrafa com Dorival Caymmi: “Eu que tenho rosas como tema/ canto no compasso que quiser”.
Trata-se de poetisa disposta a baralhar os registros – o lírico-discursivo, com imagens da convenção literária, e o elíptico, com sobreposição de imagens(por vezes antilíricas). O longo e impressionante poema final, Rosa completa, é o exemplo maior dessa amálgama, que outro poema, o pequeno e irônico Rosa serotonina, pode exemplificar:
Esta é a menina
a malina
menina
da rosa serotonina
discernida sua colheita
é inibida a ricocheta
deste fermento tão fino
pozinho de fazer rosa
crescer no chão do sertão
menina, nina, niña rosinha
sage enfant e crazy child
berückend Kind
linda, flor ascendendo
em letra, luz, mais luz,
ploppie!
serotonina – eis a rosa. (PARANHOS, 2016, p. 13.)
Uma pequena joia de ironia, delicadamente indigitando o mundo com os apelativos da infância em quatro línguas. Ri-se do nosso tempo medicamentoso e hedonista, que faz da substância neurotransmissora algo tão importante, comparável ao signo de eleição do livro – a rosa. O jogo de assonâncias e todo o ludismo com os predicados da flor,que redundam na onomatopeia e exposição final, são exemplos, entre outros, dos efeitos de contraste de linguagem, na aproximação com poemas de fatura mais discursiva. Entre esses outros, destaca-se a série Confissões à rosa, composta de um poema em quadras e dois sonetos. Vejamos o segundo, também exemplar:
Chamejas, surda, textura cerrada,
fosses tu concha ou túnica de monja.
Em ti percebo a face, a mais amada,
mas me assusto com outra, em que me sonho.
Espelho ou lago, refletes minha face
exposta ao tempo em larga tempestade.
Enquanto te protejo da procela,
abandonas-me – esconsa, muda e cega.
Tu és da primavera, interminável,
e eu, no desamparo, vago, nua,
curvada pelo inverno, em sede louca.
Não suspeitas do amor, não sabes nada:
se palmilho entre lágrimas a rua
só eu te vejo, vives nesta boca. (PARANHOS, 2016, p. 43.)
Neste soneto, a primeira quadra, com um par de versos brancos e outro rimado, de assonâncias internas e sibilações (textura/ túnica; concha/monja), antecipa as rimas toantes da segunda quadra, começadas pela palavra “face”, termo também anunciado antes. O desdobramento rímico, rimado e branco, espraia-se nos tercetos; formalmente, há uma estrita correspondência com o tema: é possível ler nessa música fugidia os encontros e desencontros entre o eu lírico e o signo “rosa”.
A face da rosa
Como os dois poemas transcritos, os demais do livro são intitulados com a flor: “O poeta e a rosa”, “Rosa branca”, “Rosa das horas”, “Rosa terçã” etc. A outra palavra, além de “rosa”, que grassa nesse roseiral é precisamente face; e não será demais se aproximarmos todas as ocorrências.
Vamos a elas: “E o meu amor, vejo sua face/ de flor cerrada” (p. 17); “Descubro a face/ da flor velada” (p. 23); “achava o rosto/ na tua face” (p. 29); “Rosa de sonho e metal – / em busca da face humana” (p. 34); “ao divisar a face da beleza” (p. 35); “Ora contemplo a face – / que palidez de lírio!” (p. 41); “Em ti percebo a face, a mais amada,/ mas me assusto com outra, em que me sonho” (p. 43); “Espelho ou lago, refletes minha face” (idem); “Tua face já destila em cor, e coras” (p. 45); “Assim que olhei na tua face/ percebi clarões intensos/ de estrela no rosto móvel” (p. 47); “O moço procurava ver a face/ amada, meio a tantas, esquecida” (p. 49); “Vejo agora a cor da face,/ aliciando a canção” (p. 51); “Assim que lhe olhei na face/ recebi a luz intensa/ de estrela, no rosto magro” (p. 55); “Dorso de serpente, face rosamarga” (p. 77).
Esse inventário de tantas faces, que chega a extremos de se contrapor ao sinônimo rosto, há de significar algo. A recorrência sinaliza para que seja a própria alma da metáfora “rosa” no livro, bem aquilo que Paul Ricoeur, partindo de Aristóteles, chama de epífora: um movimento do signo para fora de si. É essa palavra –“face” – que estabelece nos poemas um notável jogo entre informação e perplexidade (RICOEUR, 2000, p. 30), característico da epífora. Ricoeur o pensa, não em termos tradicionais de uma referência, mas – agora com Wimsatt – como um ícone, em aproximação com a tradição bizantina, aí entendendo um caráter de coisa, pela suspensão referencial e fusão do som e do sentido no poema. Trazendo para o livro em estudo: “rosa” é metáfora porque som e sentido conjugados (nos seus contextos, evidentemente) correspondem a “face”, mas ao mesmo tempo essa referencialidade se oblitera. “Face” pode ter o sentido de espelho humano, metonímico; “rosa” pode passar a corresponder também a outros signos, ainda que de referência ao humano, como em Rosa serotonina. Torna-se um ícone; de modo inverso,em alguns poemas, tal ícone é permutável pela metáfora/ícone da rosa: “Vejo agora a cor da face/ aliciando a canção” (poema Rosa sedução, p. 51).
Como isso é possível? É intuitivo que a metáfora de flor com face ou rosto se estabelece por analogia do corpo humano com a estrutura vegetal, de partes superiores correlatas. Quanto à rosa propriamente, diz Juan Eduardo Cirlot sobre seu simbolismo: “significa o absoluto e a perfeição”, mas, bem por isso, “pode ter todas as identificações que coincidam com dito significado, como centro místico, coração, jardim de Eros, paraíso de Dante, mulher amada e emblema de Vênus” (CIRLOT, 1992, p. 390; traduzimos). Se aproximarmos esse verbete – “rosa” – do “rosto humano” no mesmo Dicionário de Símbolos de Cirlot, encontramos talvez a chave da “face” em Poemas da rosa:
Em si, o rosto simboliza a “aparição” do anímico no corpo, a manifestação da vida espiritual. As infinitas flutuações dos “estados de ânimo” que, por analogia, podem relacionar-se com variadas estruturas do real, refletem-se nele, particularmente no olhar. (CIRLOT, 1992, p. 390; traduzimos.)
Ora, voltando ao livro de Paranhos, temos que o ícone rosaparece mais apto que toda a flora para simbolizar as “infinitas flutuações dos estados de ânimo” da face humana, tomada como metonímia do sujeito lírico.
Há vários momentos do livro que tornam evidente essa preocupação com a simbólica da rosa, como o poema Rosa seca, ao tratar da “flor azul” – que tanto o Dicionário de Símbolos de CIRLOT (1992, p. 390) quanto o de CHEVALIER e GHEERBRANTE (2009, p. 790) relacionam ao impossível – “Do livro azul caiu a flor azul/em seda e sonho”, diz a poetisa, em Rosa seca. A mais disso, o simbolismo tradicional do amor é acionado no poema em quadras sobre a rosa como flor votiva da deusa Vênus (“Rosas de Vênus”), texto que remete aos presságios de Júlio César quando da conjura que o matou. Podemos citar, ainda e sem esgotar os exemplos, o pequeno poema sobre a Rosa mística, uma das denominações da Virgem Maria.
Equilíbrio híbrido
Apesar de não constar nas muitas epígrafes que abrem o livro, a sombra tutelar de Cecília Meireles marca presença em momentos significativos. Estará, dispersa, nas aproximações entre rosa e concha – que ecoam o vocabulário marinho ceciliano – a exemplo, não só do soneto II de Confissões à rosa, que transcrevemos, mas do Terceiro motivo da rosa. Este é um diálogo com o Segundo motivo da rosa, de Cecília, que significativamente o dedicou a Mário de Andrade. Na carta de agradecimento que remeteu à autora, o presenteado a chama de “Rosa Cecília Meireles Rosa” e admite sua preferência por este poema (em relação a outro que Cecília lhe oferecera)dado ser um soneto – “forma sublime e tão tênue que tantos males secretos andaram desencaminhando por aí” (apud MEIRELES, 1996, p. 36). Esse raro diálogo entre vanguarda (Mário de Andrade) e lírica discursiva (Cecília Meireles) é a própria fonte geratriz da poesia de Conceição Paranhos.
Contudo, se Mário falava em “ecletismo sábio” (ANDRADE, 1955, p. 161) sobre Cecília, porque lançava mão do verso livre ou medido conforme a necessidade, já isso hoje se tornou correntio, ficando a novidade, se houver alguma, não tanto na variação rítmica, mas na construção do sintagma do verso. Usando métrica ou verso livre, Cecília sempre se colocou como lírico-discursiva; mas, quando morria a autora de Viagem, em 1964, Conceição Paranhos tinha vinte anos e publicava em jornais os primeiros poemas. Encontrava diante de si um cenário bem mais diverso e, aluna de Tasso da Silveira na Faculdade Santa Úrsula – o mesmo poeta junto ao qual se congregara Cecília e o grupo da Revista Festa –, Paranhos foi jovem quando o Concretismo, a Poesia Práxis e a Marginal faziam ruído, na pretensão de juventude que toda vanguarda tem. Hoje, não caberia falar em “ecletismo sábio” diante de uma poesia, como tantas,também ceciliana na oscilação entre o verso livre e o medido: a questão que se coloca é entre lira e antilira, entre subjetivismo e objetivismo, entre discursividade e poema elíptico.
Parece ser na amálgama de dicções – a lírico-discursiva e a elíptico-antilírica – que Paranhos mais se realiza, afirmando, em qualquer caso, seu subjetivismo. Formalmente, seu melhor não é a oscilação eclética, que também pratica, mas o equilíbrio híbrido. Se os momentos mais antilíricos rendem algo lúdico e bem dosado como Rosa serotonina, não vão muito além disso; já os poemas puramente discursivos, apesar do evidente domínio técnico, não mantêm em geral a voltagem de Confissões da rosa II.
Isso se dá sobretudo pelo uso à solta da convenção literária, a que referimos de início. Não se pode compreender de outro modo, tendo em vista a obra anterior da autora, que a força da imagem seja tantas vezes preterida em Poemas da rosa. Naquele tipo que Hugo Friedrich (1978, p. 206-210) classificou como “metáforas de genitivo” – em que a adjetivação inusitada, regida de preposição, esconde uma fusão de imagens – é preciso reconhecer que “carrilhão das horas” (p. 11) ou “broto da espera” (p. 57) soam bem tíbias, e mais ao lado de metáforas meramente atributivas, como “flor de chama” (p. 9) ou “rosa de ouro” (p. 57). Ocorre que, em tais casos, o “uso comum” de que deveria desviar-se a imagem (função reconhecida desde Aristóteles: allotrios) não é tanto o da oralidade, mas o do próprio discurso lírico de convenção, abalado pelo Modernismo e pelas mesmas vanguardas há muito assimiladas por Paranhos. A suposição do propósito autoral não excusa o resultado: é forçoso convir que tais momentos desmerecem os demais e prejudicam o conjunto. Em alguns sonetos, também o estrito paralelismo dos tercetos apenas reativa o velho esquema silogístico da forma, de arremate conclusivo, fazendo pensar nos descaminhos dos “males secretos” de que já se queixava Mário de Andrade a Cecília Meireles.
A poesia recobra as forças no já mencionado poema final,Rosa completa, onde encontramos a autora na sua melhor forma, com apropriações estrangeiras e mots-valises – o somatório neologístico de dois termos – “rosamarga”, “belicamorosa” –, supressão de vírgulas para maior agilidade e outros característicos das vanguardas do século XX. Um torrencial brado vocálico lembra a Ode marítima, de Fernando Pessoa, nesse poema construído em enumeração caótica – outra novidade já gasta, cujo encanto Paranhos consegue revivicar. História, mitos, referências literárias parecem conduzir à rosa como símbolo máximo do feminino (“menarcas sem pausa”), da mulher amada e da mãe, como ensina Carl Gustav Jung: “É um terno germinar e renovar, uma vida em potencial que tem tudo pela frente e ainda contém dentro de si todas as possibilidades de realização sem estar sujeita ao esforço da configuração” (JUNG, 1989, p. 384). Não é outra a busca da poetisa por uma imemorial “rosa/ oblíqua e cega”, entre lira e antilira:
De alguma forma nos acanalhamos.
Rosa.
Ocorre oblíqua e cega
após toda a vida já desde vivida. (PARANHOS, 2016, p. 75.)
A sequência do poema faz pensar nos momentos mais felizes de ajuste da invenção verbal com a discursividade em nossa poesia: na Última elegia, de Vinícius de Moraes, ou no Poema sujo, para lembrarmos ainda uma vez Ferreira Gullar. Não é comparação de valor, mas de linguagem, e ainda assim é certo que Paranhos não vai tão longe nos estrangeirismos, como o primeiro, nem desce até o calão, como o segundo. Em algum lugar entre tais extremos situa-se a autora de Poemas da rosa em grande forma, com a suprema coragem de explorar um dos signos mais cansados da convenção poética em qualquer língua.
WLADIMIR SALDANHAé poeta, crítico e tradutor. Doutor em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou os seguintes títulos de poesia: “As culpas do poema”(2012), “Culpe o vento” (2014),“Lume Cardume Chama” (2014),“Cacau inventado” (2015) e“Natal de Herodes” (2017). Como tradutor, participou da reedição anotada de A cinza do Purgatório, de Otto Maria Carpeaux, pela Editora Danúbio, de Santa Catarina, tendo ficado responsável por verter referências de poesia francesa. Tem artigos de crítica no Jornal Rascunho(Curitiba), Jornal A Tarde (Salvador) e Jornal Opção (Goiânia), além de crítica acadêmica.
MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS é poetisa, ficcionista, dramaturga, ensaísta e tradutora. Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal da Bahia. Ph.D. pela Universidade da Califórnia, Berkeley, foi professora da Universidade Federal da Bahia. Estreou em poesia no ano de 1969, quando conquistou o Prêmio Arthur de Salles com “Chão Circular”. Autora, entre outros títulos, de: “ABC re-obtido” (1974, poesia); “Os eternos tormentos” (1986, poesia); “Adonias Filho: representação épica da forma dramática” (1990, ensaio); “Doutor Augusto partiu” (1995, contos); “As esporas do tempo” (1997, poesia) e “Poemas da rosa” (2016, poesia).
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REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho. 2. ed. São Paulo: Livraria Martins, 1955.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Tradução de Vera da Costa e Silva et alii. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2009.
CIRLOT, Juan-Eduardo. Diccionario de Simbolos. Barcelona: Editorial Labor, 1992.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
JUNG, Carl Gustav. Símbolos em transformação. Tradução de Eva Stern. Petrópolis: Vozes, 1989.
MEIRELES, Cecília. Cecília e Mário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
PARANHOS, Maria da Conceição. Poemas da Rosa. Mondrongo: Ilhéus, 2016.
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 2000.