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3 poemas de Marcos Nascimento

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[Pamela Colman Smith, ''Egmont'' Beethoven, 1907]




Irmão Em Ruínas
 sobre a implosão do prédio abandonado conhecido como Esqueleto na Rua Marechal Marciano em Bangu

Erguida a pique
Valentia de muralha
Homogênea de carne e corda
Barbanteáveis
Um sufrágio para os homens 
(entre eles uns te querem perto)
Terraço de titânio com a boca do céu espiralada
Tocar tuas nuvens a partir de hoje 
É dadiva de chuva

Ensaios ao alaranjar da ave maria
Desarmando a praia 
Deixando-a
Sem pedras
Colidindo meu reino de imberbes
Contra tua mão
De esmalte dourada
Em longa febre padecem teus mortos 
Registros, álbuns de recortes salivam 
Fotografias 
Desaceleradas em formol

A dinamite expõe tua via crúcis
Serviste de teto aos tristes
Terá quem te espere no solo
Ainda que carcomidos tantos braços te abarcam 
Pudera 
Após o tremer de tuas vértebras 
Calos
Em leito de areia dobram-se joelhos de cal
Janelas minúsculas entre nervuras e dobradiças
O engenheiro que te dá nome não assina
Tuas deformações e ranhuras
Tórax ungido de pichações
E inscrições bíblicas: - Leia Coríntios 12:21 – 
Papelotes entreabertos qual papoulas 
Fora de época desabrocham

A placenta real contrai, mas não procria
Com um beijo a mortalha sela  
Teu nascimento pro chão
A ogiva de entulho que te cerca, encerra-te
Sem raízes ou pés de vento
Apesar de tudo 
Agora podes ser leve.





Pongo en tus manos abiertas…                                                                     
                             para Víctor Jara                                                                                    

acho tuas mãos de terra e sedimentos
enterradas (obtusas e
ósseas) em um rude deserto
onde os brutos corroeram tua boca até calarem teu ferrão 
resgato a mão esquerda – ainda  conserva as unhas
penduradas a fio leve junto a carne
mordiscada algumas vezes – deixada  para trás
por uma família de vermes
bichos desses que servem pra comer herois
sobras do jantar de domingo antes do futebol

colho a mão direita de dentro de um fundo buraco
em estado decomposto  
já nada possuem de tua vida – não  poderiam dedilhar nenhum instrumento
que não seja seu próprio tendão exposto –  
a canção de teu desaparecimento enquanto homem
em sonho ouviremos 
de tua boca nostalgias e rancheiras:
Víctor teus filhos procuram teu paradeiro e eu só tenho
tuas mãos para redimi-los
dez dedos que não podem escrever poemas – dez 
dedos que não podem acariciar o rosto de quem amas – dez  
dedos na brancura do osso – dez  
dedos e a escuridão do corte que separa a comunicação entre tato e corpo –  
dez dedos que já não podem com o mundo

essa noite lá pelas bandas de San Ignacio - um homem foi visto andando à procura de duas mãos que lhe foram arrancadas há quarenta anos.”

terá um indivíduo assim mutilado o direito
de voltar depois de morto?
um viés de vingança e soldo, revogar o que lhe foi tirado 
vivo Víctor você estará ou estarei eu com as mãos de outro?
Víctor sem mãos para pedir aos céus 
sem mãos para apertar o pescoço – de  quem –  
mas por baixo da camada morte – tua  retidão –  
tuas mãos agora inúteis ainda fariam miséria
a qualquer tocador de viola ¬
quem poderá desfazer tuas notas – diapasão  inquebrantável –  
outrora poderíamos cantar em coro o que só a capela fará 
em teu isolamento – figura  etérea das noites chilenas –  
mesmo que teu fantasma andarilho por aí se perca 
a ninguém assombra antes ilumina.





A bula cotidiana

As notas da drogaria
sabem mas calam
de nossos vícios pequenas neuroses
que curaríamos caso o mundo fosse um tanto mais manso
as notas da drogaria e os mares que frequentamos
hoje me arrependo de não termos lá nos afogado
habitaríamos as madrugadas sem pressa
pedras cobertas por ondas
ou enfim heroicamente assoreados
habitaríamos a chuva justamente quando ela se torna pássaro
e esquece qual canto lhe sairá da garganta 
entre as cordas tensas e os fios de seda e os anéis de fumaça
se entrelaçam mouras 

sombras: se te arrimam no cadafalso torna-se uma

caso nos afogássemos agora seria na lama 
a densa e escura deusa a cegar nossa prosperidade
os vivos não rogam o bem à falta de pressa
praguejo 
na portaria esbarro em estranhos
eles insistem em gorjear bom dia
mantenho os olhos baixos
comungamos a mesma hóstia fria
vaticinam:
nada feito.

sou residente de outro
interceptado no cólon.




Marcos Nascimento, 30 anos, é carioca de Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Graduado em História pela Universidade Gama Filho, poeta desde os 17 anos quando teve seu primeiro blog, já publicou poemas nos sites: Labirinto Literário e Mallamargens. Escreve críticas e resenhas musicais para os portais de jornalismo cultural: Rock Press e Altnewspaper. Prepara seu primeiro livro de poemas para ser lançado em 2017Integra desde 2013 a Oficina Experimental de Poesia.





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