Luís Costa
Fotografias: Esculturas de Sara Navarro
( a técnica da cozedura ( ancestral ) do barro usada pela Sara Navarro é a soenga.
como se pode ver na primeira fotografia )
I
O vindimador sai à rua
traz na mão esquerda uma pomba de luz
o espaço arde discretamente
e as crianças dançam à volta do chafariz
com girândolas de ouro na testa
o ar aplainando-se como carne viva
as portas abertas
braçadas de olores muito antigos
entrando
e os velhos acariciam os seus animais
de estimação
então /
a oleira aparece
a oleira / violenta
rompendo a cortina dos barros cirúrgicos
agora /
ela aproxima-se do vindimador
ela traz à cabeça um cibório de bronze
lá dentro:
a combustão dos cereais
e o vindimador olha-a
ele sabe que Ela é a FONTE
– a abertura secreta da matéria sonora
II
Fecho os olhos
a flor do trigo sobe-me pelos ventrículos
persigo a cintura das tuas horas metálicas
o grande interior que me inquina
ah! a alegria dos cavalos
os microfones das clareiras
no fundo dos lagos
onde os teus olhos habitam a dor nocturna
inscrevo o teu nome na ânsia do barro
és um chão de sombras iluminadas
- um abismo que relincha
III
Os reflexos dos cestos - nos espelhos - nas paredes do barro.
em frente - o fogo.
e as sombras dos mortos - no jardim - contam as estrelas.
os animais aproximam-se pelo cio da água.
fontes! rios!
asas enroladas à cintura do bosque.
a certas horas - neste lugar -
a água dança no colo do fogo.
e as noras ouvem-se - dentro das cisternas -
possantes.
um campo abandonado.
o retinir das bandeiras.
ah! e suave o vento rasteja pela terra arável dos sonhos.
estas ruas! encruzilhadas!
sempre as mesmas - mas outras.
aqui - o sangue estremece para desabrochar
na barro do cântico.
e os chilreios das estátuas ardem
no palato da oleira que sonha.
a velha criança espreita-a. é uma gateira oceânica.
ó grande vento nocturno!
amanhã a colheita acontecerá
( - talvez. )
IV
Debruça-se
lava as mãos - iluminadas de noite - no tanque grande
morosamente penteia os longos cabelos negros
o Grande Mistério escorre das torneiras arcaicas
a nora chia – chilreios! claridade!
nos lábios rebenta o flash do sangue nómada
e evoca o mundo através dos vasos da árvore magnífica
dos olhos que a olham por dentro
e de olhos fechados inscreve o fogo
no barro
V
Mananciais que perfuram
as paredes da vertigem
erva que cobre as ruínas
espigões maravilhosos
acendendo o céu
o doce tempo das mães
onde repousam as torneiras
dos celeiros
objectos vazios
por dentro a perplexidade
da luz do azeite
e oleiros que regressam
das grandes viagens
que pelas pontas dos dedos
exibem a claridade do barro
VI
Do barro ergue-se a mulher
por entre os dedos febris
o sangue que era um repouso
bate agora a repique nos ventrículos
paira sobre ela
a noite do oleiro
Sara Navarro
Licenciada em Artes Plásticas - Escultura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa em 2005. Atualmente desenvolve a sua atividade entre a prática artística e a investigação. É investigadora colaboradora do CIEBA – Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes da Universidade de Lisboa e do CIAC – Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Universidade do Algarve. É bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, encontrando-se a realizar doutoramento, na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, com o plano de investigação “Potes e Transfigurações: a arqueologia como pretexto para a escultura”. No âmbito da referida investigação, realiza as exposições individuais: “Formas de Terra e Fogo” Museu de Portimão (2012) e “Do Magma às Estrelas” ruínas romanas de Milreu (2012), que documentam a componente de prática artística da investigação que atualmente desenvolve.